Carta-Prefácio
(de Guerra Junqueiro)

Meu bom amigo:

O seu livro é a história patética de uma alma. Qual?

A do Gebo, a de Luísa, a de Sofia, a da Mouca, a dos Pobres enfim? Não. A sua. Histórias diversas, que se resumem numa história única: a da sua alma, transitando almas, a da sua vida, percorrendo vidas. Autobiografia espiritual, dilacerada e furiosa, demoníaca e santa, blasfemadora e divina. Confissão verdadeira, plena, absoluta de um organismo que sente a música misteriosa do universo, de um coração que repercute a dor eterna da natureza, mas que só ao cabo de oscilações, dúvidas e desânimos, coordena a idealidade do ser com as aparências do ser, o espírito com as formas, o Deus — amor e beatitude, com a matéria —, crime e sofrimento.

Não vejo diante de mim um poema estéril, obra dos sentidos, da imaginação e da volúpia. Vejo um ato profundo, espontâneo, de imensidade religiosa, O homem que se confessa abala-me e deslumbra-me. Não a confissão mentirosa, a confissão vulgar, da boca que tem dentes, para o ouvido que tem sombras. Não a confissão-análise, a confissão de críticos, rol de inteligência, catálogo de ideias. Mas a esplêndida confissão das almas vertiginosas, desagregando-se, transidas de eternidade e mistério. Como o fogo devorador dissocia o rochedo, há lavaredas ignotas que dissociam as almas. E, se tais almas se desdobram, a natureza denuncia-se. O homem é um resumo ideal da natureza. Andou o infinito, e lembra-se; andará o infinito, e já o sonha. Quando o génio explui, conta-nos a natureza a sua história. O génio supremo é o santo. O verbo do santo, eis a língua clara do universo.

As confissões augustas são as dos poetas e dos santos. No homem vulgar a personalidade rígida encarcera e coalha as personalidades voláteis e difusas.

O inconsciente imenso não acorda, porque está, como um aroma, dentro de um bloco duro, impenetrável. É o sonho cativo num ovo hermético de bronze. As almas emotivas dos grandes visionários, essas conservam aquela graça radiante, aquela omnipresença espiritual, que as deixa embeber, mover, existir na fraternidade cósmica e divina. O sonhador dos Pobres é um evocador atormentado e religioso. Busquei no seu livro a imagem ardente da sua alma. Vamos ver se a desenho com rapidez e precisão.

Alma vibrátil e fugaz, olhando a natureza, o que sentiu? Assombro, esplendor, pavor, enigma, deslumbramento. Tudo vive, deseja, estremece, palpita, murmura e sonha. Tudo vive, tudo vive: o homem, a fera, a rocha, o lodo, a água, o ar, braseiros de mundos, aluviões de nebulosas, incorporeidade genética do éter.

Fervedoiro de vidas insondável, que o tempo não esgota, porque a morte criadora continuamente o desorganiza e reproduz em formas novas e diversas. E todas se cruzam, beijam, penetram, correspondem. É uma teia vertiginosa de fios sem fim, de fios móveis, ondeantes, cambiantes, urdindo-se ela mesma, na eternidade impenetrável, sem ninguém ver o tecelão. Rigidez, solidez, inércia, não existem. Na fraga mais dura, no bronze mais compacto circulam desejos, dramas, turbilhões de moléculas e vontades. As cordilheiras inabaláveis são redemoinhos dentro de enxovias. O concreto dilui-se, o material evapora-se. O sol tombando, aniquilaria cardumes de planetas, e a luz do sol, que é sol volatilizado, pesa menos que uma folha de rosa na mão duma criança. Em cada bloco metálico latejam oceanos dormentes, de vagas fluidas, invisíveis. Acordem-nos, e o bloco obtuso, eletrizado, irradia no éter. Vede um penedo monstruoso: parece firme. Desagregou-se, e é lama; a raiz tocou-lhe, e é seiva; a seiva gerou, e é flor e é fruto; o fruto, alimento; o alimento sangue; e o sangue vermelho, corpo que caminha, carne que fala, cérebro que pensa.

Natureza! universo!... Vidas infindáveis eternamente circulando numa vida única. Assombro, esplendor, pavor, deslumbramento! O homem vacila, desmaia, quer equilibrar-se... mas onde, se não há terra em que poise, nem muro a que se encoste?! Tudo impalpável, fugaz, incerto, ilusório, ilimitado... tudo vida, tudo sonho, tudo voragem... Se baixa os olhos do imenso ao grão de areia, o grão de areia, infinitésimo, resolve-se-lhe em vidas infinitas. Quer contemple o universo, quer examine um corpúsculo, a alma engolfa-se estonteada, no mesmo abismo devorador e criador.

Abismo de aparências ocultas, abismo de vozes que se não ouvem. A natureza taciturna exprime-se magicamente, em línguas vagas, silenciosas. E quando num pouco de cisco murmuram mais vontades do que bocas humanas há na terra, o que não dirá o colóquio formidando de todas as vontades do universo! Tem cada organismo a sua língua peculiar. Os que vivem mais próximos entendem-se melhor. O ar segreda à água, a raiz ao lodo, a luz à folha. o pólen ao ovário. Há fluidos que se casam, raízes que se querem bem. O oxigénio é intimo do ferro, o azougue é íntimo do ouro. Os orbes fraternizam, os metais amalgamam-se, e as eletricidades sexuadas buscam-se avidamente, para copular!

Matéria infinita — forças infinitas, infinitamente caminhando. E no pélago vertiginoso da mobilidade universal é cada átomo invisível um desejo que nasce, um desejo que sente, um desejo que fala...

O léxico sem princípio nem fim, das vozes mudas do incriado, das línguas tácitas da natureza, alguém o ouviu que se recorde? Alguém: o homem. O homem, crisálida do anjo, foi monstro e planta e verme e rocha e onda; foi nebulosa, foi gás impalpável, foi éter invisível.

Articulou todas as línguas, e delas conserva, obscuramente, vagas memórias dormitando. Por isso os poetas adivinham, e raros com a intuição prodigiosa do meu amigo.

Abreviando: a sua alma, diante do universo, reagiu por três formas ou em três fases emotivas. Estudei a primeira — a emoção dinâmica. O mundo resolve-se-lhe num jogo de forças, num conflito de vontades, brigando, casando-se, transfigurando-se em aparências rápidas, ilusórias. Tudo se move, tudo quer e tudo vive.

Mas o que é a vida? Chega à segunda fase. Desliza da emoção dinâmica à emoção moral. Depois de ver o mundo através dos sentidos, julga-o através da razão e da consciência.

O que é a vida?

A vida é o mal. A expressão última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada.

Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de guerra, com as escamas de aço, os intestinos de bronze, o olhar de relâmpagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha, mastigando lavaredas, vomitando morte.

A pata pré-histórica do atlantosauro esmagava o rochedo. As dinamites do químico estoiram montanhas, como nozes. Se a presa do mastodonte escavacava um cedro, o canhão Krup rebenta baluartes e trincheiras.

Uma víbora envenena um homem, mas um homem, sozinho, arrasa uma capital.

Os grandes monstros não chegam verdadeiramente na época secundária; aparecem na última, com o homem.

Ao pé dum Napoleão um megalosauro é uma formiga.

Os lobos da velha Europa trucidam algumas dúzias de viandantes, enquanto milhões e milhões de miseráveis caem de fome e de abandono, sacrificados à soberba dos príncipes, à mentira dos padres e à gula devoradora da burguesia cristã e democrática. O matadouro é a fórmula crua da sociedade em que vivemos. Uns nascem para reses, outros para verdugos. Uns jantam, outros são jantados. Há criaturas lôbregas, vestidas de trapos, minando montes, e criaturas esplêndidas, cobertas de oiro e de veludo, radiando ao sol. No cofre do banqueiro dormem pobrezas metalizadas. Há homens que ceiam numa noite um bairro fúnebre de mendigos. Enfeitam gargantas de cortesãs rosários de esmeraldas e diamantes, bem mais sinistros e luxuosos que rosários de crânios ao peito de selvagens.

Vivem quadrúpedes em estrebarias de mármore, e agonizam párias em alfurjas infetas, roídos de vermes.

A latrina de Vanderbilt custou aldeolas de miseráveis.

E, visto os palácios devorarem pocilgas, todo o boulevard grandioso reclama um quartel, um cárcere e uma forca.

O deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinela.

Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro.

Maior abutre, maior quinhão. Homens que têm impérios, e homens que não têm lar.

Os pés mimosos das princesas deslizam luzentes de ouro por alfombras, e os pés vagabundos calcam, sangrando, rochedos hirtos e matagais. Bebem champanhe alguns cavalos do sport, usam anéis de brilhantes alguns cães de regaço, e algumas criaturas, por falta duma côdea, acendem fogareiros para morrer. Bendito o óxido de carbono, que exala paz e esquecimento! E a natureza, insensível ao drama bárbaro do homem! Guerras, ódios, crimes, tiranias, hecatombes, desastres, iniquidades, deixam-na tão indiferente e inconsciente, como o rochedo imóvel, bulindo-lhe a asa duma vespa. O clamor atroador de todas as angústias não arranca um ai da imensidade inexorável. A aurora sorri com o mesmo esplendor aos campos de batalha ou ao berço infantil, e as ervas gulosas não distinguem a podridão de Locusta da podridão de Joana D’Arc. Reguem vergéis com sangue de Iscariote ou com sangue de Cristo, e os lírios inocentes (estranha inocência!) desabrocharão, igualmente cândidos e nevados.

A humanidade, enfim, é a vitória dos arrogantes sobre os humildes, dos fortes sobre os débeis, da besta sobre o anjo. E tendo de escolher entre vencidos e vencedores, entre o amor e o ódio, o mal e o bem, o riso e as lágrimas, o seu coração misericordioso de poeta inclinou-se espontaneamente para a Dor, como as vergônteas para a luz.

A dor é o seu deleite. Busca-a, desejo febril! — por hospitais, por cadeias, por antros, por alcoices.

Fareja-a de noite nos bairros leprosos, cloacas de humanidade, vazadouros de almas, onde crimes, virtudes, vícios, angústias, raivas, desesperos, fermentam promiscuamente, aglomerados e abandonados, como esterqueiras, como entulhos. Pesquisa dédalos caliginosos, cafurnas sem fundo, abismos hiantes, boqueirões de sombra. Explora desvãos, trapeiras, minas, covas, esconderijos. Louco de piedade, engolfa-se nas trevas mudas e soturnas, que gotejam sangue, nas roucas escuridões tumultuosas, pávidas de gemidos, cortadas de clamores, anavalhadas de blasfémias.

E do âmago dessas noites insondáveis pululam turbas espetrais de crucificados, hordas de monstros, bandos de misérias, cardumes de abominações e de agonias. Ululam tropéis disformes e sangrentos, regougam fauces patibulares, choram, coroadas de úlceras, Madalenas lívidas, bocas de escárnio crocitam sem dentes e sem pudor, arquejam ralas estertorantes, gemem crianças vagabundas, tossem tísicos, ardem febres, luzem gangrenas e podridões... E tudo vago, indistinto, confuso, num rumor longo e subterrâneo. Não se destacam, não se desenham as formas. Olhos, bocas, gestos, relampeando na sombra... Nada mais. A sombra voraz esbate as linhas e os contornos. É o mundo caótico da miséria, que a noite pútrida gerou e a noite soturna há de engolir... o seu mundo, o mundo dos pobres, meu grande visionário, quase desconhecido e genial.

Homens de gosto colecionam quadros ou estátuas.

O meu amigo coleciona dor. Não em galerias ou museus, como quem se dedica ao estudo biológico das várias formas de sofrer. Quando uma chaga aterradora o surpreende, não a envasilha num frasco, guarda-a no coração.

Conta-lhe os ais, não os micróbios. Em vez de a analisar, decompondo-a, analisa-a beijando-a. No seu laboratório químico existe apenas um reagente, que dissolve tudo: lágrimas.

O poeta dos Pobres não é um romancista. A alma do evocador fluidicamente se desagrega nas almas de sonho que ele evoca. Dir-se-iam espelhos, brancos, verdes ou azuis, planos, côncavos ou convexos, refletindo todos eles um único semblante, que julgamos distinto, porque aparece deformado.

Chamei aos Pobres uma confissão religiosa. Não há dúvida. Os seus pobres, meu amigo, são bocas de visões, articulando a alma dum vidente. Falam a sua língua e contam-nos a sua história. Não a história, no minuto e na rua, do homem-sicrano, mas a história, no espaço e no tempo, do homem infinito, que vem de Deus e para Deus caminha.

No drama dos Pobres há dúzias de atores e um só personagem: o dramaturgo. As suas figuras não constituem individualidades reais, caracteres verosímeis, logicamente arquitetados e definidos pelas inúmeras causas de existência, conglobadas em duas ordens genéricas, — a herança e o meio. Os seus ladrões, assassinos e meretrizes, não roubam, não matam, não copulam: sofrem. Sofrer, eis o seu mister. Mouca, Luísa, Gebo, Gabiru, — pseudónimos. O nome real, o nome verdadeiro de todos eles é um só: a Dor.

Inevitável. Desde que o meu amigo rasgou as máscaras enganadoras ao Universo, para lhe descobrir a essência e natureza intima, e desde que a lei do Universo é o predomínio do mais feroz e do mais forte, toda a imensa humanidade, tumultuosa e vária, se resume logicamente em dois homens apenas: o algoz e a vitima, o homem que sofre e o homem que faz sofrer. Os bons são os que padecem. A miséria, mesmo sinistra e delinquente, é já um princípio de virtude. Nenhum dos ladrões, nenhuma das prostitutas do seu poema resvalaram ao vicio ou ao crime por vontade própria, por fatalidade fisiológica. Obrigou-os a fome, calcou-os a injustiça. A sua infâmia e a sua ignominia é a avareza ou a luxúria dos homens opulentos e devassos. Todos os ricos, ainda os caridosos, são perversos, e todos os miseráveis, ainda roubando ou esfaqueando, são criaturas boas, porque são vítimas dos primeiros. Os retratos dos benfeitores do seu hospício parecem-lhe «uma galeria de afogados, todos solenes, secos, hirtos, de lábios finos e ar de cerimónia». E as alfurjas, cadeias e prostíbulos, onde se amontoam, num horror tenebroso, os vícios alucinados e os crimes exorbitantes, afiguram-se — lhe à imaginação misericordiosa como templos de angústias, santuários sagrados de tribulações e de martírios. É um flos-sanctorum da miséria, a dor do enxurro canonizada e sublimada.

Mas se a lei da natureza é iníqua e feroz, visto os maus triunfarem e os bons sucumbirem, donde vem essa lei, quem a gerou, quem a impôs ao universo? Quer a criasse, com o universo, uma vontade alheia, quer ela seja imanente ao universo infinito, é, nos dois casos, uma lei monstruosa, negadora da suprema ideia do espírito do homem, a ideia do bem e da justiça. Contradição inexplicável: A natureza é iniquidade, porque a lei que a rege assegura o predomínio e a sobrevivência do mais forte. Mas quem me leva a dizer que a natureza é iníqua?

O sentimento do bem e da justiça, desenraizável do meu coração e do meu cérebro. Logo existe também na natureza, pois que eu sou natureza, a lei do amor e da justiça, contraposta à lei da força e da violência. Se Cristo morreu na cruz, a natureza é o mal. Mas sendo a natureza o mal, como é que dela nasceu o mesmo Cristo, afirmação de todo o bem?

A ideia do bem e da perfeição, levada ao infinito, é a ideia de Deus. Mas como harmonizar o absoluto perfeito com a natureza imperfeita? Como fazer sair a diversidade da identidade, o complexo do simples, o mal do bem, o universo de Deus?

Chegamos à terceira e última fase do seu espírito: à fase religiosa, à emoção divina.

A natureza desagregada em movimento traduziu-se — lhe em dor e resolveu-se-lhe em amor. Movimento infinito, dor infinita, amor infinito, eis os três rostos da natureza no espelho cada vez mais profundo da sua consciência, nos olhos cada vez mais abertos da sua alma.

O dinamismo atómico do universo reduziu-o, — pavorosa síntese! — à dor sem fim, à dor universal. Viver é sofrer, e tudo vive, tudo sofre. Vida infinita igual à dor eterna, eis a equação matemática da natureza. Pandiabolismo, satanás-universo. Um círculo infernal, hermeticamente inexorável. Não há, pois, evasiva? Há. Desse inferno sobe uma escada de chamas tenebrosas, que vai ao purgatório, e do purgatório uma espiral de luz radiante, que nos leva ao céu. A dor, que se lhe afigurou a essência íntima da vida e a sua única expressão, não era, ao cabo, o substrato último da natureza. o fundo irredutível do universo. A dor não era irredutível. A alma, vencendo-a, converteu-a em amor. Não há beleza esplendente que não fosse dor caliginosa. A flor é a dor da raiz, a luz a dor das estrelas, e a virtude ou o génio a dor ascendente do éter luminoso, cristalizando no homem, ao fim dum calvário inenarrável de milhões e milhões de séculos sem conta. A alma de Jesus proclama o triunfo da santidade sobre o crime, como o corpo de Vénus entoa a vitória da linha viva e musical sobre a linha inerte, a linha bruta e desarmónica. Beleza de essência ou beleza de aparência, virtude de Jesus ou formosura de Vénus, têm, ancestralmente, a iniciá-las o mesmo horror e a mesma imperfeição. Do verbo odiar nasceu, evolutivamente, o verbo amar. Se o homem foi tigre, o beijo foi dentada.

Toda a alegria vem do amor, e todo o amor do sofrimento.

A alegria é o sofrimento amoroso, o sofrimento espiritualizado. Deus é, pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dor. E, vencendo a infinita dor, ele é a infinita alegria, a paz absoluta, a glória eterna, a bem-aventurança ilimitada. Deus sustenta-se realmente, como diz o meu amigo, do sofrimento universal.

Nos meus Ensaios Espirituais, ainda inéditos, eu exprimo inúmeras vezes a mesma ideia. Quer ver?

Destaco uma página:

«Só a dor infinita produz o amor absoluto. Deus, amor absoluto, sustenta-se do sofrimento do universo. É uma luz eterna, alimentada por um incêndio eterno. Deus, amor absoluto, projeta-se em dor infinita de natureza.

Para ser a perfeição absoluta, encarnou-se na imperfeição ilimitada do universo. Deus não se compreende sem universo. O perfeito vive do imperfeito, como a chama vive do combustível. O mal é a condição do bem, o erro a condição da verdade, o crime a condição da virtude. O santo é santo, porque venceu o demónio. Sem o demónio, o santo não se compreende. Sem universo imperfeito não há Deus perfeito. Satanás é uma das faces de Deus.

Mais ainda: Satanás é o corpo de Deus. Deus é Deus, isto é, infinita perfeição, infinito amor, porque vence eternamente infinitas imperfeições e infinitas dores. Deus é a completa afirmação do Bem, pela completa e contínua vitória sobre o mal. No instante em que o mal acabasse, acabava Deus. Deus não é ideia, pensando-se infinitamente: é ato infinito, amor infinito, a realizar-se pela infinita vontade na duração infinita. Eliminando o imperfeito, o perfeito evapora-se. Destruindo o relativo, destruireis o absoluto: o absoluto que fica é o absoluto não-ser. O infinito amor de semelhante Deus seria o infinito amor de si próprio, o infinito egoísmo. É como se quiséssemos resumir a infinidade dos números em um número único, infinito, eterno, inalterável, o número absoluto perfeito, e realizássemos a síntese da infinidade numérica no absoluto do zero. Tudo igual a nada. Não!

Deus é infinito amor, esforço infinito, atividade infinita.

O universo é o corpo de Deus, é a carne de Deus. Deus é absolutamente perfeito na diversidade infinita, por que sem essa diversidade infinita não há, nem pode haver, a união suprema. Mas a síntese da vida é irrealizável na ideia de número e quantidade, na ideia concreta de matéria. Só na ordem moral se unifica absolutamente a vida vária do universo. As quantidades, traduzidas em imperfeições, os números traduzidos em egoísmos, são redutíveis ao absoluto na ideia única do amor. Aí o imperfeito torna-se a condição matemática do perfeito.

Deus, amor absoluto, vive e sustenta-se dos egoísmos infinitos, continuamente evolucionando para ele. Deus, beatitude eterna, vive e sustenta-se das dores infinitas do universo. Deus como corpo, como natureza, sofre infinitamente; mas Deus, espírito puro, Deus, amor absoluto, não sente dor nem sofrimento. É a bem-aventurança e a glória eterna, porque eternamente triunfa dos sofrimentos eternos do seu corpo. O santo verdadeiro dá-nos a imagem pálida de Deus. Deus é o santo perfeito, o Cristo absoluto e universal.» Adoramos, pois, o mesmo Deus, unificamos a vida na mesma síntese. Mas o autor dos Pobres não desvendou, ideologicamente, abstratamente, o segredo da natureza, a explicação religiosa e intima da vida universal. Não a estudou como filósofo, descarnando-a, dissecando-a, até lhe descobrir as leis inalteráveis e recônditas da sua estrutura evolutiva. Não fez do cérebro um instrumento de visão, agudo e claro, gélido e penetrante, com ele interrogando, dia a dia, no sorvedoiro cósmico, o borbulhar infinitiforme da existência. Não mediu a vida a compasso, não a formulou em teoremas ou equações. Viveu-a. O seu livro não é a história dialética da razão dum homem, sistematizando e codificando a natureza. Não é a história dum encéfalo, desdobrada em ideias. É a história dum homem, a história plena e formidável dum organismo inteiro, — da carne e dos ossos, do sangue e das lágrimas, das mãos que abençoam e que destroem, dos olhos que choram e que fulminam, da boca que reza e que tritura, da alma do lobo, que vem de Satanás, da alma do anjo que se encaminha para Deus. Sim, a história universal dum homem, gemida e rugida, furiosa e cândida, não para que Deus mundo lha ouça (então seria hipócrita) mas para que Deus lha escute, na eternidade e no silêncio. É a confissão clamorosa, satânica ou celeste, das energias infinitas, evolutivamente amalgamadas e condensadas no mistério pávido dum homem. O abismo insondável, retraindo-se, cristalizou num ponto; e esse ponto, adquirindo voz, confessou o abismo, revelou o insondável. Almas inúmeras se agrupam na alma sintética e central. Há em cada alma infinidades de almas.

E umas tão horríveis e loucas, que as escondemos para que as não vejam, e outras tão inconscientes e profundas que, habitando connosco, as não chegamos sequer a conhecer. O poeta dos Pobres conheceu-as e confessou-as todas. Desde a mais clara à mais crepuscular e tenebrosa, irradiou-as todas plenamente, no estado nascente, ingénuas e vivas, sem ocultar um única.

O seu Deus não é o último termo duma cadeia lógica de silogismos. Não o descobre pela razão, atinge-o pela emoção. O meu amigo não raciocina, isoladamente, com o encéfalo. Raciocina de chofre e com todo o corpo. As ideias brotam-lhe espontâneas, como o sangue da facada ou a flor da haste. Palpitam de vida, mas vida viva, — no estado genésico. Não falam, não discursam, não discorrem. Gritam, uivam, ululam, gemem, rezam, blasfemam. Ciclones de ais, de orações, de imprecações, de fúrias, de lamentos. O meu amigo pensa, forma juízos, como as eletricidades formam raios.

O seu Deus é a expressão da sua emotividade. Ou, bem no fundo, da sua moralidade. Só crê em Deus, só descobre Deus, quando em si, pela virtude, momentaneamente o realiza, ou tenta realizar. Se a bondade e a paz lhe existem no coração, a natureza resolve-se-lhe em Deus, em amor supremo. Mas, daí a instantes, o egoísmo invade-o, e não é já em Deus, é na química, que a explicação do mundo lhe aparece. Qual a fonte do ser, a razão da vida? É o acaso, é o apetite, é o amor, é Deus ou Satanás, conforme as horas ou os dias, conforme o equilíbrio instável da sua carne e do seu espírito. Logo de começo, a página 76, define Deus abrasadoramente numa língua de chamas, num paroxismo de dor e de misericórdia, num êxtase candente e lagrimoso, tão férvido e tão lúcido, que arrebata e deslumbra. Fulgiu-lhe súbito, no âmago da alma, a verdade da vida. A vida é um calvário. Sobe-se ao amor pela dor, à redenção pelo sofrimento. Cristo é um redentor humano, Deus o redentor universal. É o ser infinito, porque é o amor ilimitado. E a natureza tenebrosa, vista de Deus, divinizou-se por encanto.

Guerras, lutas, crimes, catástrofes, desordens, evaporam-se e fundem-se em harmonia mágica e perfeita.

Mas logo adiante, a páginas 90, a natureza, divinizada, reverte e regressa à sua forma demoníaca, de matéria bruta.

«Ser só, sem amigos, sem apertos de mão, sem conhecidos, ser só e livre, que sonho!

Do altruísmo absoluto, do absoluto amor, que é Deus, retrogradou ao individualismo anarquista, ao egoísmo feroz, que é Satanás. Do pólo positivo saltou ao pólo negativo. Entre os dois pólos, entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, vai oscilar e flutuar a sua alma, ora aproximando-se de um, ora aproximando-se do outro, ora imobilizando-se quase, pelo hausto indutivo das duas correntes antagónicas.

Tal um Cristo, penosa e religiosamente escalando o calvário, e que, a meio da encosta, varado de dor, esvaído o ânimo e evolada a fé, arrojasse a cruz dos ombros, exclamando num ímpeto: «Basta! Se o caminho do céu é um martírio abrupto, uma inferneira íngreme, desisto do céu e volto para trás para o conchego do meu lar, para a ternura de minha mãe, para o afeto dos meus parentes e meus irmãos. Antes risonho e feliz, junto do meu pai humano, que é carpinteiro, a aplainarmos cruzes, do que, morto e crucificado, na glória infinita do meu divino Pai celestial!» E assim blasfemando, retrocederia na encosta do sofrimento e da amargura, para, já lá no fundo, voltar a subi-la novamente, a cruz nos ombros, com maior fé e maior ânsia.

O seu poema é a história da escalada trágica do seu calvário. Mil vezes o meu amigo tomou nos ombros a cruz da dor e da paixão, e outras tantas a deixou cair, exausto, com ais de desânimo, ou a sacudiu exasperado, cuspindo invetivas no lenho duro do resgate. Mas por fim, sangrando e chorando, galgou a montanha do erro e do sofrimento. Chegou a Deus, e em Deus ficaram imóveis e serenos os olhos tristes da sua alma. Polarizou-se em Deus, de vez e de vontade. Livre, enfim! Libertou-se.

Não volte à servidão, à escravatura negra e demoníaca. Mantendo-se liberto, a obra de hoje, patética, mas angustiosa e desigual, a obras futuras, vastas, claras e radiantes, servirá de entrada e de prefácio. A arte vale mais ou menos segundo a porção de amor que abrange e que revela. A arte soberana é a que conjuga a natureza toda, — homens e monstros, águas e árvores, pedras e nuvens, sóis e nebulosas, com o verbo infinito e perfeito, o único verbo criador, que é o verbo amar. O universo atómico, partículas inúmeras e vagabundas, fraterniza em Deus, unificado numa só alma e num só corpo.

Rezar o universo é polarizá-lo no infinito amor.

Cantar não basta. Rezar é mais. Rezar é o superlativo divino de cantar. A oração é a canção angelizada, a canção chorada e de mãos postas. O universo absorve-a, compreende-a. Ouve-a Deus, os homens escutam, e as ondas, as águas e os rochedos, vagamente a percebem, como um hálito amigo, uma carícia branda e luminosa.

Reze todas as dores, pobrezas, misérias, lutos, sofrimentos. Reze o lodo e o sangue, o ninho, o covil, o hospital, o cárcere, a enxovia, a terra trágica, ulcerada de mortes, e a noite côncava e fúnebre, ulcerada de sóis e de nebulosas. Reze a dor, mas reze também a alegria, que é dor vencida e desbaratada pelo amor. Reze o triunfo do amor, a alegria ascendente da natureza, a marcha épica da vida pelo caminho eterno, que não tem fim. Reze chorando, mas lágrimas fecundas, que façam parir a terra, palpitar o seio e germinar a semente. Lágrimas de aurora, orvalho vivo e criador. Rezar e chorar, mas heroicamente, na ação e na luta, no mundo e para o mundo. Rezar, como Nuno Álvares, entre o fogo ardente da batalha.

Enganam-se os que vão para Deus, voltando as costas à natureza. Quem se quiser salvar, há de salvar os outros.

Quem renegar a natureza, renega Deus. A ascese egoísta, eis o ateísmo verdadeiro. A imobilidade é sacrílega, a escuridão é sacrílega, o silêncio é sacrílego. A vida é som, é luz, é movimento. A vida marcha por abismos, trágica e formidável, mas ruidosa e sinfónica, vestida de luz e de mil cores. Amortalhá-la de negro, arrancar-lhe a língua, para que não cante, e os olhos, para que não deslumbre e não dardeje, é como se lhe cravássemos no coração uma facada sinistra. O quietismo beato, apagando o universo, apaga Deus. Quietismo e niilismo, — dois zeros, dois sinónimos. O frade católico, na concha da mão, exangue e paralítica, sustenta uma caveira. o nada olhando o não ser. O monge ideal, na dextra poderosa, em vez da caveira, tem um globo de oiro constelado. Tem o universo. É o monge futuro.

Seja ele o tipo a que se encaminhe, embora de longe, a nossa fé e a nossa arte. Rezemos, vivificando e sublimando. Arte criadora, que seja pão e seja luz.

Se nos acusarem de hipócritas, deixá-los acusar; mentem. E a mentira só aos mentirosos prejudica. Se nos amesquinharem a fama e cercearem a glória, desviando de nós as multidões, que não pensam e vão para onde as levam, melhor. Os que nos querem, os que nos amam, os que nos entendem, ficarão connosco. Os outros, deixando-nos, prestam-nos favor. Lesam-nos somente na vaidade, que é vício ruim, grama que custa a deitar fora. Portanto, melhor. E se nos insultarem e injuriarem, melhor. E se nos perseguirem, melhor. E se nos apedrejarem e ensanguentarem, melhor ainda, muito melhor. Quando a alma, ao termo de mil hesitações e desenganos, cravou as raízes para sempre num ideal de amor e de verdade, podem calcá-la e torturá-la, podem-na ferir e ensanguentar, que quanto mais a calcam, mais ela penetra no ideal que busca, mais ela se entranha no seio ardente que deseja.

Seu amigo e camarada cordialíssimo
GUERRA JUNQUEIRO.

Capítulo I
O enxurro

Vem o inverno e os montes pedregosos, as árvores despidas, a natureza inteira envolve-se numa grande nuvem húmida que tudo abafa e penetra. As coisas di-las-íeis recolhidas e cismáticas.

É um rolo misterioso e profundo que vem dum mar desconhecido. E a chuva começa, o ruído doce da chuva que faz sonhar em tantas coisas idas e tristes!

Primeiro a terra embebe-se e incha. E, depois de cheia, a torrente jorra até polir as pedras: ara, põe raízes à mostra, arrasta na aluvião o húmus, as folhas secas das árvores, os cadáveres dos bichos, os detritos desagregados das rochas, que rola juntos, dispersa e reúne, atira, entre a baba da água, para um destino ignoto.

Assim é a vida. É um rio de lágrimas, de brados, de mistério. A onda turva põe as mais fundas raízes a mostra, a torrente leva consigo de roldão a desgraça e o riso; sem cessar carreia este terriço humano para uma praia onde as mãos esquálidas dos que sofreram encontram enfim a mão que os ampara, onde os olhos dos pobres, que se fartaram de chorar, ficam atónitos diante da madrugada eterna, onde todo o sonho se converte em realidade...

É noite. A ventania redobra e nas lufadas que passam viajam gritos, catástrofes, lamentos. Sou pobre e transido e nada sei da vida, mas sou um príncipe. De que terra?, direis. — Do sonho. E assim neste prédio revolvido me quedo, sozinho e triste, a escutar... Ouço um rio que os mais não sentem.

Cada criatura nascida traz consigo uma fonte, fio de água humedecendo a frincha duma pedra ou levada impetuosa e aos jorros. É ela que tira à vida a sua secura.

Em certos seres pobres e simples quase se ouve essa água correr tão amoravelmente, que dá vontade de nos chegarmos à sua beira. É emoção. Minai, não na deixeis secar.

Neste casarão onde moro a toda a hora se ouve o ruído da levada; corre sempre como as torrentes desordenadas e esplêndidas. Prega o inverno bravio, o vento e os aguaceiros passam, mas escutai, escutai!...

São meus vizinhos, lá em baixo mulheres perdidas, ao pé de mim dois casados, e na trapeira um gatopingado, a quem chamam S. José. As mulheres passam às vezes na rua, com os xailes a rasto; o gato-pingado só sai à noitinha à hora dos morcegos. Mais tímido que eu, encontro-o nas escadas a tossir, com o peito escalavrado e roto.

Para que vive esta ralé? Levantam-se derreados, para cavar, para berrar, para que lhes deem um pedaço de pão e só se deitam no sepulcro. Caminho sem sonho.

Da vida coube-lhes este quinhão amargo: o cansaço, a humilhação e a fome.

Se passam pelas árvores num dia de primavera, tão lindo, que até as próprias macieiras de comovidas se desentranham em flor, sabeis o que acontece? As árvores retraem-se, as coisas calam-se, ao vê-los passar cobertos de suor, calcados e gastos. Para que é que vivem aos gritos ralé, pedras, sapos? Para que é que Deus os cria?

O gato-pingado... Ei-lo que sobe. Cada passo me lembra uma pazada de terra. É soturno este homem, esguio e magro, com o chapéu alto embrulhado no lenço do rapé e a casaca dobrada no braço. Nunca fala. Estou mesmo em dizer que não pensa, este avejão que só sai para os enterros. Deve ser mau, deve ser duro: nunca decerto chorou. Os garotos apedrejam-no quando passa pela rua, esguio, vesgo, de chapéu alto e casaca. Aposto que, quando arrancam das casas os caixões como quem arranca o coração dos vivos, ao ouvir gritos, tem o riso interior de quem está farto de viver só, arredado e humilhado... Gato-pingado! gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se de dores. E quando vai, de tocha acesa, esguio, a galgar atrás dum carro funerário, na reles mascarada, em que irá ele a pensar, esbaforido e triste?...

Outros... Casaram há muito. Pobre e sem mãe atiraram-na um dia para um colégio de órfãos, onde cresceu entre maus tratos. Riam-se dela. Era um aborto que crescia por caridade. Passava a vida na enfermaria e os médicos — acho que de propósito — livraram-na da morte, para que depois sofresse.

Encontro-a nas escadas, com as botas do homem, os cotovelos rotos, e magra e desleixada que faz piedade.

— O melhor tempo que eu vivi foi o da enfermaria.

Havia lá uma irmã que me beijava e fazia festas...

Mais felizes são os cães vadios, mais felizes, incomparavelmente, são as árvores O homem chega a casa e bate-lhe, faz-lhe tratos.

Se chora e se queixa desanca-a mais. E agora, como não dá palavra e só pensa: — Antes eu fosse para criada de servir! — ele quer que ela grite e chore.

Antes tu fosses para mulher da vida, digo-te eu!...

Esta manhã apareceu com os olhos inchados e pisaduras na cara. O vestido já lhe não serve. E como está frio, reparei, traz os pés metidos nos sapatões de homem, sem meias e roxos. Aprende na vida, sofre! Até à morte, até que te acabe de matar com maus tratos. As vezes, se ele sai, põe-se à janela, a cismar na irmã, que, quando caia doente, lhe dava beijos e lhe fazia festas — e pergunta:

— Porque não morri então?...

Cala-te e sofre. E até à morte, até o teu pobre corpo cair exausto e moído, negro de pancadas.

Este velho que pára nos patamares das escadas, gordo e mole, de cabelos brancos estacados, é o Gebo.

Todo curvo, olha com um olhar aguado e tonto.

— Ó Gebo!

E ele, erguendo o carão aflito:

— Anh?...

E como este, mais. A toda a hora vai o enxurro humano polindo as pedras. A ventania açouta o casarão e passa, levando poeira de cisma, ais, para outro mundo ignoto. Com a noite redobra a vida desta multidão feita de terriço: certos homens são sonhos, outros gritos. Põe-se o Gebo a contar a sua história, surge uma velha trágica, com o caio dos palhaços, e o Gabiru, filósofo esguio que tem descoberto mundos e ignora as coisas mais simples da vida. Remexe num brasido de ideias e nunca olhou cara a cara a existência. Anda atónito na rua, perdido num mundo que descobriu à proa do seu barco como um navegador. No subterrâneo do prédio mora — há quantos anos? — um homem que ninguém viu e de quem ninguém sabe a história. Emparedou-se. Odeia a luz: essa poeira azul, que embebe os seres e as coisas, Março, a árvore, a vida tumultuária e larga como um rio, nunca mais a viu. Está vivo num túmulo: só as paredes esbraseadas, à força de sonhar, a rubro como as pedras duma forja, conhecem a sua dor. Pára no patamar o Gebo contando o que sofreu aos pobres que o querem ouvir.

Muitos fazem roda e ele narra pedaços duma triste existência de humilhação e de esmola, sempre esbaforido e escorraçado, a filha a sustentar o desprezo do mundo, as suas correrias, desorientado e com lágrimas, atrás do pão para os seus.

A ventania aumenta, abalando o prédio. De que é construída uma casa? De pedra. Todo o globo é revolvido para abrigar o homem. A árvore e a ossada da terra são arrancadas para o servirem. Juntem a isto gritos. De pedra, de árvores e de gritos foi construído o Prédio.

Juntem a isto sonho, que transforma as coisas. Um sofre nos subterrâneos, outro de tanto sonhar empoeirou de oiro o granito. De forma que toda a casa, amolgada e revolvida, tomou alguma feição daquelas existências. É a habitação do Gebo, das prostitutas, do Gabiru, do Pita.

Escancara-se o portão, caem-lhe os telhados, mas se, em cima, nas mansardas arrombadas dá de chapa o sol, acreditá-la-eis a cismar, a cantar. É efetivamente de pedra e de sonho.

Chove, mas a terra árida não tem água nem plantas.

Em volta a cidade é odiosa, pedras sobre pedras, muros atrás de muros. O céu fica muito alto e só se vê das trapeiras. Há seres lá no fundo que nunca levantaram a cabeça... Andam-se léguas e a cidade não acaba, envolta em fumo cada vez mais negro e riscada de chaminés cada vez mais altas.

Só um simulacro de árvore cresceu naquele saguão infecundo. Sustenta-se de dor. As suas raízes foram minando até ao Hospital, construído em frente da casaria, para sugar a vida dos pobres. Se um raio de lua, escoado pelas nuvens, a toca — eis um fantasma de árvore todo de pó de luar...

Quedo-me sozinho nas noites estiradas, ouvindo o enxurro vivo. Muitas vezes são lágrimas que correm ou emoção que brota com o ruído dum fio de bica cheio de cintilações e rumores. O cair de lágrimas é sempre duma tristeza pacifica... Na noite negra o Hospital entaipa a cidade: árvores, noras humedecidas, montes solitários, parece que os proíbe aos desgraçados: como um velho sumidouro espera, guarda, construído de pedra e num brasido por dentro, todos os que sofrem, santos, pobres, mulheres perdidas e heróis.

O Pita, embrulhado no seu xaile-manta, murmura às vezes ao contemplá-lo:

— A misericórdia humana constrói destes castelos, para que os ricos não assistam ao sofrimento dos pobres.

E fê-los de pedra, de granito bem sólido, para que se não ouçam os gritos cá fora.

Capítulo II
O Gebo

Hei de tê-lo encontrado, esse velho gordo, de cabelos brancos estacados e um ar de aflição que faz riso e piedade. Chora, depois caminha esbaforido. Parece que vai gritar, de cabelos brancos estacados, e, de súbito, baixinho, pede-vos esmola. Tem um riso de humilhado e o aspeto duma bola de sebo de cabelos brancos estacados. É o Gebo. É gebo por ser pícaro e roto e por a desgraça o ter calcado aos pés até o tornar ridículo.

Triste existência sem ódio e sem gritos. A vida não na entende e recebe cada empurrão com o ar espantado e aflito de quem não compreende. Que mal fizera? que mal fizera? Pois a desgraça faz rir? o sofrimento faz rir?

E em torno as bocas escancaram-se, ao verem-no gordo, pedinchão e grotesco.

Há seres que nascem com esta sina — amargar a vida. Tudo lhe corre torto, até as coisas mais simples, as coisas que para os outros nem sequer existem. Em que hora aziaga encontrou a má sorte que nunca mais o deixou? A desgraça escarrancha-se no pescoço de certos homens. E é para sempre, para toda a vida! Nunca mais os larga. Viera a quebra, aflições ainda mais negras que o coração dos outros. Enganavam-no, com a alegria de o verem rebaixado e perdido, empurrão daqui, empurrão dali, aos tombos por esse mundo. E ele punha-se a olhar para a desgraça, atarantado e estúpido. Que mal fizera para sofrer?

E mesmo a chorar, a sua máscara, de cabelos brancos estacados, fazia rir.

Era destas criaturas a quem um montão de desgraças torna ainda mais ridículas: a ruína, a miséria, e a fome. Enlameado pela vida fora, resignado e chorão, ele aí vai...

— O Gebo!

E todos se riam ao vê-lo chorar de aflição. Diziam uns: — Que não fosse tolo! — E os pobres, a quem tanta vez valera, gostavam de o ver calcado como a terra dos caminhos. Qual é a razão por que a desgraça alheia consola a nossa própria desgraça, dizem-me?...

A tressuar, aflito, depois de espezinhado, ainda esse ser mole e gordo, aos quarenta anos, cria na vida como as árvores e as crianças creem: assim no globo passam existências ignoradas de sofrimento e de bondade, que não deixam o mais simples vestígio, como os veios de água escondidos que são a vida da terra. Sempre a suar, quase sem saber gritar nem saber queixar-se, o Gebo tinha um coração ígneo.

Era casado e tinha esta felicidade: uma filha. Uma filha sempre prende a existência! uma filha pequenina sempre tem nas mãozinhas uma força!

Muito tempo mentira à mulher, que ia vivendo iludida. Ria o Gebo com o coração torcido, para que elas fossem felizes mais algumas horas — últimas horas tiradas à desgraça. Até que um dia sucumbiu:

— Eu não te queria dizer... Mas ó mulher! O mulher!...

— Que é? Que foi?

— Estamos perdidos, estamos perdidos...

— Perdidos?!

— Sim, estamos... E agora? Agora? Ninguém me vale, ninguém se importa. Tenho pedido, tenho andado...e já não posso! Estamos perdidos, mulher!...

— Estamos perdidos?

— Sim...

— Tu é que tens a culpa, não tens mesmo finura nenhuma. Riem-se de ti. Todos te enganam e ainda por cima se riem de ti. Anda, vai!... Tu que queres? Que há de ser de mim e da pequena? Nós temos culpa das tuas tolices, das tuas desgraças?...

— Não, mulher, não, bem sei...

— Anda!

E ele voltava, todo o dia corria esbaforido, até que uma noite a mulher viu-o entrar, sem chapéu, enlameado, exausto — e de cabelos brancos estacados. A ingratidão embranquecera-o. Era ao crepúsculo. Tombado, como uma bola de gordura, tremia abalado pela dor, monologando baixinho:

— Oh a minha filhinha!... E todos se riram de mim, todos!... Ninguém se importa. Quem quer saber da desgraça dos outros? Ai a minha filha!

Começou uma vida desorientada e feroz. Parecia que de todos os lados havia vozes a clamar, a escarnecê-lo:

ó Gebo! ó Gebo! — Nunca mais houve paz na terra para ele: mesmo no lar tinha certos a toda a hora os ralhos da mulher desvairada e as lágrimas silenciosas da filha.

Oh essas horas em que olhara perdido em volta e só vira secura e risos! essas horas tinham-lhe deixado suor de aflição para o resto dos seus dias. Tudo se arrasara. E curvava-se sob as palavras da mulher, amachucado, sem forças para lutar, quebrado pelos desenganos e pela indiferença dos outros.

— E agora? Agora? — perguntava-lhe ela.

E ele caído:

— Agora não sei... Agora morremos todos à fome.

Batera em vão a todas as portas, aniquilado, sem ideias e sem forças. Só sabia chorar, mole e grotesco, enquanto a mulher, que a desgraça secara, lhe atirava impropérios, gritos:

— Mas levanta-te! procura! salva-nos!

Anda, Gebo! E ele lá saía, tornava aos amigos, pedinchão, desnorteado, atrás de empréstimos, de demoras, trocando as palavras e desatando de súbito a esbracejar com gritos e soluços.

Deparo às vezes na rua com estes velhos falando só, encostados às paredes, com o casaco no fio. São os velhos pobres, os velhos que chegam ao fim da vida, com olhos de pasmo, sem terem compreendido a vida e habituados à desgraça. E comparo-os com os velhos ricos que passam por mim nos seus carros de guerra, imponentes e duros, como quem avança sentado sobre os depósitos à ordem no banco. A vida acabou de esculpir estas figuras no ponto em que vão morrer. Só mais alguns golpes de escopro, duas ou três marteladas de cinzel e a obra está concluída... Nuns o olhar é direto, os outros mal se atrevem a fitar-nos: têm medo. Aquela boca é imperiosa e habituada a mandar; estes nem sabem falar senão quando estão sozinhos, em monólogos pueris que só acabam no túmulo, em monólogos infindáveis de dor, de isolamento, de desgraça. Até pelas mãos se distinguem — pelas mãos fortes e grossas — pelas mãos magras e exangues.

Há pobres duma decência que faz frio, de pessoas que querem manter certa aparência, e têm fome aos setenta anos, há os infantis, há os que se põem a olhar para a gente com a boca a tremer, como se pedissem desculpa do seu sonho e da sua humildade. Os ricos ocupam um lugar definitivo e inabalável na existência; os pobres fazem-se mais pequenos para não ocuparem lugar.

É o momento da vida em que já não se espera e está tudo julgado, tanto para os que passam nos autos, reluzentes como ídolos, como para os que se escoam pelas paredes com um embrulho debaixo do braço. Todos caminham para a morte, altivos e quase desumanos diante da eternidade, ou resignados gemendo baixinho, como quem cumpriu a vida e aceita a dor.

Hei de tê-lo encontrado, esse velho de cabelos brancos estacados, aos empurrões na vida e com um ar de aflição que faz riso e piedade.

— Ó Gebo!

— Anh?

— Conta!

E ele logo, em palavras rotas, precipitadas, bebendo as lágrimas:

— O Senhor!... Tanto tenho andado e tanto tenho sofrido! Quanto mais faço, pior, inda é pior... E já não posso mais... Acabou-se! Só Deus sabe pelo que tenho passado, as desgraças que tenho rapado e as aflições, para arranjar ao menos o triste pedaço de pão para a boca... O pior é delas.

O meu coração estala, tanto tenho sofrido. Trago a noite cá dentro. Que se lhe há de fazer? Curtir a desgraça. Anh? Tenho pena de ter sido honrado... E fica com a boca aberta, de cabelos brancos estacados.

Capítulo III
As mulheres

Ao vir a noite põem-se as prostitutas a cantar; entre as pedras ressequidas e o ruído humano põem-se as prostitutas a cantar. São pobres seres de descalabro e piedade, lama que o homem gera de propósito para o gozo. A treva leva e dispersa essa toada em farrapos, os flocos de tristeza, que são como a alma, a aflição da noite, a soluçar. Noite... Remorsos, sonhos, soou a vossa hora! De blocos negros se constrói outra cidade... Há ainda claridades esparsas, que a Sombra calada, a tatear, de súbito afoga sem rumor. E de entre as meias portas surgem fisionomias como só o remorso as cria: diríeis, de tristes e cansadas, que se vão diluir como as das mortas.

E a hora de o gato-pingado descer as escadas a passos cavos, de o Gebo contar sempre a mesma história desconexa, de os pobres saírem à procura de pão..

No escuro as mulheres falam para se esquecerem.

Às vezes somem-se as bocas e da treva irrompe aquela voz de tragédia, como se a treva falasse, ao que dum canto a escuridão responde:

— Ó tu!...

— Que é?

— Lembrou-me agora uma coisa.

— O quê?

— Nesta vida sabeis o que há de pior? É nem a gente poder estar triste.

— Aí começas tu...

Lento e lento, a noite que cai as afoga e na escuridão sente-se pairar a desgraça... Calam-se e depois a mesma voz começa:

— Vem um, quer que eu me ria, vem outro e quer-me triste. Quem entra que se lhe importa?

— E então?

— Nada. Mas inda assim olhai que é triste a gente não poder ao menos lembrar-se...

— De quê?

— Do que lá vai...

— Melhor é a gente não se lembrar do que passou.

— Tomara eu ser morta — afirma outra voz.

— E tu?

— Eu? tu falas para mim? — pergunta uma magra surgindo do escuro. — Tomara eu não ter memória, para não tornar a vê-la, como quando a vi estirada no caixão, por vê de mim...

— Quem?

— À minha mãe.

— Ah!...

— Pois é... — diz a primeira voz. — Nesta vida a gente não se deve lembrar. Toca a cantar, raparigas...

Cantai!

E as mulheres continuam a cantar, numa toada esfarrapada e lenta. Depois calam-se e uma torna a falar.

Dizem sempre as mesmas palavras, mais para fazerem ruído do que para que as escutem. Há uma que ri de tudo. É magra, pálida e gasta. Traz um pacho negro num olho e ri sempre, com um ar de máscara, de si, das outras e de todas as desgraças.

— Eu sou a Mouca — começa ela às risadas. — A minha mãe deitou-me fora era eu pequenina, e eu, se tivesse uma filha, botava-a à roda pra ganhar a vida.

Tomaram conta de mim os ladrões, cresci na rua e a minha cama eram as pedras dos portais... Tomaram conta de mim os ladrões. Vidas! vidas!...

— Tu não te calarás!

— Em pequena andei todo um inverno com uma camisa rota. Até foi bom, agora não sinto o frio. Depois moeram-me. Vocês não querem saber? Calcavam-me aos pés por nada. Aprendi. Muito custa a levar a vida... Aos trezes anos um ladrão desfrutou-me. Era um velho careca que parecia um S. Pedro. Chamavam-lhe o Lesma, vocês hão de ter ouvido falar. A gente só aprende à sua custa.

Vidas! vidas!... Eu sou feita de terra, da terra que todo o mundo pisa, mas também já tenho calçado. Ele há desgraças piores, eu sei que há. Já vi gente morrer por não ter uma côdea pra a boca. Olhai que eu conheço a desgraça. Tenho-a encarado... Faz mal quem se abaixa...

Um dia a gente põe-se a gostar dum homem e inda é pior. Que se lhe há de fazer? Todas temos de nos sujeitar, todas somos o mesmo, as ricas e as que não têm uma sede de água. O pior é quando se começa a gostar dum homem...

Vocês sabem o que e o amor? O amor é cada qual ser como um cão. É a gente ser menos que nada e eles serem tudo. Aí têm o que é o amor. Ele a bater-me e eu a dizer cá comigo: — Tu que me bates é porque gostas de mim... — Aí têm o que é o amor, é a gente ser menos que um cão...

Eu escrava, ele o senhor. Acabou-se! todas temos de sofrer.

— Todas. Não há nada pior do que nascer mulher.

— Eu nunca tive sorte. Que me importava a mim que ele me batesse? Punha-me a olhar pra as nódoas do meu corpo e a dizer cá por dentro: — Este é meu amigo.

— Um dia partiu-me um braço, mas a gente é como os cães, que só gostam dum dono que lhes dê pontapés. O pior foi que ele botou-me ao desprezo. Os homens são todos o mesmo... Vidas! vidas! Um dia disse-me: — Estou farto de ti. — E sabeis? nunca mais falou pra mim. Ai, quanto mais se pena p’ramor dum homem mais se lhe vem a querer! — Mas deixa-me gostar de ti... — Vai ele e disse-me: — Fora! — E eu fiquei passada. O meu comer eram lágrimas. E bebia a toda a hora para atormentar uma dor que se me pusera no coração. Mas ele vem! ele torna!... Qual!...

— Como se chamava?

— Que te importa? Não é bom iluminar os mortos.

Deixai estar quem está quieto. Ah! se vós o vísseis morto como eu vi!... Ver morto um corpo que se teve nos braços é como ver no caixão um filho. Por mais que a gente grite não lhe dá vida! Trazia sempre no coração a mesma dor... Vai uma vez vesti-me sossegada e fria como defunta e fui ter com ele.

— A que vens? — disse ele. E eu disse-lhe: — A servir-te.

— E ri-me. — Já sei que me não podes ver, acabou-se!

— Não me importo. O que te peço é que me deixes servir-vos.

Venho ser vossa criada. — Ele pôs-se a rir. Depois veio ela e eu pus-me a rir também — Venho ser vossa moça, quanto me dais de soldada? — Eles cochicharam.

— Onde vocês puserem os pés ponho eu a boca. Aqui estou, aqui me têm. — Eles riram-se de mim. — Anda, escrava! — Vai eu e ria-me. — Que quereis de mim? — Rua, escrava! — e eu ia-me embora. Um dia peguei e dei-lhes rosalgar a comer. Comeram-no. Então, quando o vi morto, pus-me a rir, a rir, que era uma dor do coração.

Levaram-me em braços. Na cadeia chamaram-me a perguntas e eu só me ria, Já me doía a cara de tanto rir e via-o sempre morto a meu lado. — Porque o mataste? — e eu desatava a rir-me... Aqui têm, cada qual cumpre o seu fado. Todas temos de nos sujeitar e de sofrer. Eu sou a Mouca — terminou às risadas.

Aquela porta aberta para a tragédia e para o escárnio fica em frente do Hospital. As mulheres dos ladrões e dos soldados moram ao pé da dor. As paredes negras e húmidas — mãos ao roçarem-nas deram-lhes aflição, gritos abalaram-nas — f oram construídas do mesmo sonho e da mesma pedra de que é feita a vida.

Lá dentro, a uma luz enfumaçada e oleosa, as mulheres expõem-se como farrapos de adelo ou máscaras: direis retratos a tressuar de aflição, tanto desespero ressumam as bocas que gargalham. Duas à porta espreitam, uma cisma com a fisionomia petrificada.

Outra canta, e a patroa, gorda e desdentada, calcula o ganho. Às vezes prega-lhes horas e horas:

— O amor sabe a vinagre. É pior do que a morte...

Não no queiram, ouviram?

A senhora fala! fala!... Bem triste é achar-se a gente sozinha no mundo — diz uma, derreada e tísica.

— E ter o quê? Escárnio, só se for... — acrescenta outra.

— Eu de mim, se fosse sozinha no mundo, cuido que me afogava.

— Pois andai! andai! — diz a patroa. — Fartai-vos de desgraça. É só fartar! Que sois vós? Menos que terra... Ireis deste mundo fartas de desgraça.

— Antes morrer no rio!

— Eu cá — diz outra — tenho o corpo negro, mas que m’importa? Se o meu me deixasse antes queria acabar...

Pela minha salvação que ia direitinha ao rio.

— Depois queixai-vos... — ameaça a velha. — Sereis pior do que arroladas.

— Nem as pancadas dele me doem, e mais o meu fez-me comer terra — afiança outra.

— A gente não tem mais ninguém no mundo. Quem quer saber duma desinfeliz?

— A gente não tem pai nem mãe, nem fôlego vivo.

— Se choro, os outros riem-se. Quem entra e sai que se importa?

— E ninguém neste mundo pode chorar sozinho...

— Eu cá — diz a Mouca — eu cá estou tão habituada a que me deem dinheiro, que se o meu amigo fica comigo, escondo moedas no lençol... Quando acordo e as encontro, parece que me pagaram.

As outras riem-se com risos que destoam, e a patroa prega-lhes:

— Vocês nem sequer veem... O que aconteceu à Maria? Afogou-se e o amante ri. Hélia lá foi pra o hospital. É morta. E todas morrem se se deixam ter coração.

— Às vezes mais vale morrer.

— Morrer!... — exclama a tísica.

— Eu já me matei... E depois? Foi quando me vi sozinha no mundo. Ele tinha-me desprezado. Peguei e bebi um quarteirão de aguardente com lumes. Pensais que estou arrependida? Ah, se a senhora soubesse o que se sente!... Quando me vieram dizer — foi a Mouca — que o meu amigo estava com a outra, foi como se tornasse a ressurgir diante de mim a mãe que eu matei à força de lágrimas, por me ver na triste vida. Nem podia gritar.

Tinham-me secado os gritos aqui — na boca... Saí, andei...

A porta dela estava fechada e ali fiquei até de manhã ao frio. Os homens que passavam diziam o que lhes parecia, porque ninguém ideia o que cada um traz dentro do coração. Cismei, passei a noite ora a cismar, ora a chorar. Nesse dia pôs-me o corpo negro, como este lenço que trago na cabeça. Olhai... Ainda tenho as marcas. Estás só na cova me passam. — Farta-te, se queres, mas não me desprezes... — Vai ele e disse-me: — Fica pra aí, estupor, que te não posso ver — Vejam vocês!... Se isto é assim no mundo, se a gente cá vem pra isto, para nos deitarem fora, e não há mais nada, era melhor morrer... E antes tivesse morrido pra não ter mais que penar...

— O hospital está à espera, raparigas — diz a patroa do canto.

— Ouvi dizer que os estudantes cortam a gente pra estudar?...

— E a mim que me importa?

— Eu já ouvi a um... E o que eles se riem uns com os outros!...

— Depois da morte a gente não sente.

— Quem é pobre acho que vai sempre pra eles aprenderem a estudar.

— Pois a mim é o que me entristece... O meu pobre corpo ser retalhadinho!

— Lá está o hospital à espera, raparigas!...

— Tu não te calarás!

Riem-se, uma fica cismática e a patroa continua:

— Filhas, ainda podeis enriquecer. O que é preciso é muita experiência da vida. Não há nada pior do que envelhecer pobre... O que eles se riem! E põem-se a rir até do nosso ódio, ouviram?

— Quem nasce pra esta vida mais valia morrer.

— E tu pra que vieste?

— Foi o meu fado.

E a velha continua:

— Haveis de querer comer e tereis...

— O quê — diz uma, ansiosa.

— Pedras.

— Acabou-se! — diz outra.

E fica cismática.

— Mais nos valia morrer.

— Mais valia.

— Andai, andai! Lá tendes todas no hospital uma enxerga e o lençol. E o cemitério pode sempre com gente.

Aquele nunca se farta.

— Tem sempre fome — murmura do lado uma sorrindo.

— Pois tem — afiança a companheira.

— Deixá-lo ter! — exclama a Mouca.

— Envelhecei pobres e vereis! vós vereis!... — ameaça a patroa pondo-se de pé.

— O quê, senhora?

— Para sempre, traz-se para sempre uma pedra no coração sem se poder arrancar.

— Então para que nasce a gente? Só para sofrer? — pergunta Sofia.

— Só. A este mundo vem-se para sofrer.

— Ah!...

— Enganai-os. Tratai de juntar, de juntar dinheiro.

O resto tudo é fingido...

Mas uma, triste e magra, a tísica:

— Nesta vida todos nos rebaixam e a gente precisa de encontrar alguém, um pobre como a gente...

— Inda que seja um ladrão... — interrompe Luísa.

— Ao pé de quem se não sinta desprezada.

— Meteu-se a gente na triste vida e nunca mais pode sair — afiança a outra. — Olhai que me lembro... Cada qual aqui é menos que nada, é como a terra...

De dia pela porta escancarada vê-se o banco do hospital. Nada mais puído do que essas míseras tábuas de pinho secas, gastas, distinguidas, e nada também mais comovente. Vivem, estremecem. Há coisas que, à força de serem tocadas pelas mãos humanas, ganham alma, criam fisionomia. Antes da morte ali tombaram os corpos que, como uma pua, a dor brocou. Aquelas tábuas mirradas, de se sentirem a toda a hora roçadas pelas mãos de náufragos (todos os que entram no hospital ali passam, santos, poetas, pobres com a boca cheia de gritos), começaram uma outra existência.

Foi a árvore arrancada à terra para amparar os pobres. É ainda mais bela do que levantada no topo do solitário monte, ao nevão, ao sol, à tempestade, às estrelas. Ei-la enfim somente erguida para a dor. Tábuas que já deram sombra na floresta, embebidas de seiva e de azul, vieram servir de encosto a míseros: têm nódoas de sangue, dedadas de aflição e suor de desgraçados que se entranhou na madeira.

Capítulo IV
O Gabiru

No último andar do prédio mora o Gabiru, um solitário filósofo, esguio e triste como um enterro. Sabe tudo e nunca viveu. O que existe para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde.

A realidade também não na entende: da vida só se fartou com sofreguidão desta fonte que transborda — o sonho. Tem o olhar estático e, metido na trapeira com ignóbeis calhamaços, deixa correr as suas ideias à solta como os rios. Assim, metafísico e pobre, de raras palavras, deitou-se a armar a Mouca, escárnio de soldados.

Nasceu para sonhar. Tem um suspiro de alívio quando se fecha na mansarda e exclama: — Vou idear!...

— Sabe palavras, teorias, cartapácios, e nunca viu ao pé os rios, os montes, nem as árvores. Remexe em ideias profundas e nunca encontrou a realidade.

É assim feliz e triste. Posto à janela do cubículo espreita por cima do Hospital, sente correr o doirado jorro dos dias, cisma num portentoso sonho e ama. Entre as ideias que vai tecendo surge sempre aquela figura trágica, que todo o dia ri com os ladrões e os soldados...

Ignora a vida. Alguma coisa, porém, existe de imaterial — emoção violeta e oiro — que o rodeia, quase o toca e súbito foge magoada e aos soluços. E fio a fio vai tecendo e constrói a sua teoria:

«Oh como eu tremo diante das árvores, do luar que corre branco e sem murmúrio, da natureza esplêndida que adivinho para além dos muros do Hospital!... Passo por doido e na verdade quase grito de pavor diante do espantoso universo. Olhai a treva a escutar, o mistério, a água que brota sem ruído, a árvore de braços erguidos, o caliginoso mar...

O homem passa indiferente, mas eu sinto-me enlouquecer diante das coisas mais simples: dum farrapo de nuvem como um sudário a rasto, dum raio de luz em pó, todo de oiro vivo, que entra no meu quarto. Nunca me pude habituar a olhar a natureza cara a cara. Isto!

Que significação tem isto? E um sonho, um grito de beleza, uma alma? Montes verdes e etéreos lá ao longe, constelações infinitas, névoa que do mar nasce e sobre o mar vai, como um portentoso rolo, como um giganteu fantasma...

E não adquiro o hábito. Todas as manhãs é como se pela vez primeira me achasse diante da monstruosa natura — verde, oiro, azul, com os seus rios, florestas, o mar a bramir e árvores que são seres, vida que pressinto extraordinária e que nunca vi ao pé!... Por isso, sobretudo nestes dias de inverno, em que anda uma prodigiosa voz de Adamastor a pregar à terra e às coisas dilaceradas, eu me ponho, escondido e só, a discutir o enigma...

Devo, porém, notá-lo: eu sou uma criatura singular.

Há até quem me suponha doido. Todos os que são apenas restos de sonhos vivos e despedaçados como eu, têm este feitio encolhido e transido. A esta hora da noite em que o universo parece desabitado e em que até o rumor da pena no papel me faz medo, fecho-me sobre mim mesmo e escuto-me: alguma coisa, que não sou eu próprio, se põe então a murmurar baixinho. E eis-me perdido no canto duma negra trapeira, encolhido e esguio, a sonhar em quê? Naquele universo verde e ígneo que está para lá das pedras...

Desabituei-me de falar, mas sonho. Há vozes esplêndidas dentro em mim; de mim brotam árvores, estátuas mutiladas, pedaços vivos de sonho. Oh eu creio que cada criatura é um composto de almas de montes, de pedras, de águas, e creio também que existe uma misteriosa ligação entre o homem e os mundos. Estou preso às estrelas, àquela confusão de tintas e murmúrios e aos cardos humildes.

Dizem rindo se passo encolhido e esguio:

— Lá vai o Gabiru!

Deixá-lo dizer! Eu sou mais feliz do que os que riem, e antes quero conviver com os desgraçados do que com os outros. Deles tiro emoção para o meu sonho.

Depois fecho-me nesta trapeira alta, construída nos telhados e donde se veem seres admiráveis: labaredas verdes que se agitam — e são árvores; nuvens pousadas sobre a terra com oiro a flux ou então dum violeta desfalecido — e são montes; e rolos que correm vivos e fluidos — e são rios. Muito tempo levei a decifrar-lhes o nome. Nenhum dos desgraçados o sabia, porque o Hospital enorme entaipa a cidade, e essa vida húmida, torrentes de detritos, árvores, primaveras, gritos de sol, é desconhecida a todos os que sofrem lá em baixo, entre o granito ressequido. Só outro pobre, o Pita, da trapeira contígua vê como eu a prodigiosa natureza — a Mãe.

Oh! e há horas, quando uma neblina de sol cai sobre as coisas estarrecidas, todas verdes, em que eu quase toco o mistério. Ouço as palavras da natureza numa linguagem de que não compreendo o sentido. Os sons são sílabas perdidas, umas de oiro, outras verdes. O ar é fino, alma empoada de luar, as árvores desmaiam e os grandes montes pálidos, onde o sol deixou fuligem, que vai esmorecendo até ao vir da noite, falam baixinho, entontecidos. Mais tímido é o murmúrio das fontes, como se não quisessem perturbar o espantoso diálogo.

É esta a melhor hora para se ouvir e em que eu quase entendo as palavras, Há coisas desfalecidas: árvores vão tombar de emoção e de tudo o que existe sai uma prodigiosa alma etérea e viva, que me envolve e toca, e que fala! que vai falar!...

Donde nasce esta beleza? donde vem tudo isto?...

Se um homem cai prostrado e grita, as suas palavras ígneas são apenas sons que, misturados a outros gritos de dor, formam palavras dum monólogo enorme. E credes que existam montanhas, águias, o mar, crede-lo por ventura?... São sílabas, são vozes da Terra, que entra no diálogo. E mundos, estrelas, são palavras d’Aquele que no infinito prega. É sempre a mesma força, a única força que cria a beleza e o sonho, a força donde brota a Vida.

Eu tinha visto que a dor era sempre necessária para se produzir alguma coisa de belo: para se agarrar um pedaço de sonho, que, apenas entrevisto, foge; para que nas nossas mãos esquálidas fique um farrapo dessa figura de prodígio; para que a vida tenha um fim; para amar; para criar; para que alguma coisa de duradouro reste.

Num grito existe sempre viva uma porção de beleza. Da cova nascem coisas materiais, formas, árvores, nuvens — da dor a beleza absoluta.

E com que fim? dir-me-ão.

Imaginem um estatuário: para compor uma marmórea figura, para realizar um fantasma entrevisto, precisa de sofrer. Depois tritura o barro, petrifica a dor.

E acaso pergunta se o barro sofre? Assim Deus esmaga o barro que nós somos para construir alguma coisa de extraordinário: mundos, a Vida e a Morte, alma infinita que tudo atravessa.

De que precisam os poetas para fazer uma obra de génio? De dor. O sofrimento cria. Lembram-se das figuras de mármore, para sempre debruçadas sobre os túmulos antigos? O luar que vem pela rosácea tocando-as dá-lhes uma vida de sonho, fá-las todas de poalha; estremecem, levantam voo, dir-se-ia. Pois a dor, fio a fio, como o luar, dá vida ao sonho.

Para se criar é preciso sofrer. Hoje e sempre só a dor é que dá vida às coisas inanimadas. Com um escopro e um tronco inerte faz-se uma obra admirável, se o escultor sofreu. Mais: com palavras, com sons perdidos, com imaterialidades, consegue-se este milagre: fazer rir, fazer sonhar, arrancar lágrimas a outras criaturas. Com as simples e secas letras do abecedário, um desgraçado com génio, metido numa água-furtada, edifica uma coisa eterna, uma construção mais sólida e mais bela do que se fosse arrancar os materiais ao coração das montanhas.

O que é então a dor, milagre extraordinário, que consegue dar vida às fragas? o que é esse assombroso fluido, que se comunica, alma arrancada da própria alma e que se pode repartir como o pão? Nunca houve sob o sol criatura que sofresse da verdadeira dor, cujo sofrimento não consolasse ou salvasse. Até as mais humildes, como árvores que ainda depois de mirradas vão aquecer e iluminar os pobres.

A dor dá a vida e não é a própria vida: cria, redime, obra prodígios e nada há que se comunique, que convença, que torne os homens irmãos, como ela... Para onde vão pois todos esses gritos, unidos num só grito?

Visto que nada se perde, que é que se sustenta no infinito com essa enxurrada de lágrimas? Deus?

Por muito tempo escutei o ruído de vozes, de exasperos, de gritos de criaturas. Vinham da guerra, do Hospital, da miséria humana.

E desse mar espezinhado nasciam clarões, as nebulosas donde surgem mundos. Esse eterno rio de gritos, a correr desde que o homem existe, vai desaguar no infinito.

E que a dor é a única força que verdadeiramente cria e destrói: é a Força. Alimenta Deus e o limo. É um atlântico de fogo, é o espírito do universo. Cria claridades na alma dos desgraçados e faz nascer montanhas.

As árvores são emoções da terra.

Sonhai! sofrei!

Este mundo é talvez, como disse um filósofo desconhecido, uma gota caída dum oceano infinito de beleza.

O universo é o sonho dolorido de Deus.

Nada se perde. A alma, as ideias e as emoções, fazem parte da força que faz florir o céu e os humildes pomares ignorados.

Eu coleciono a dor. Passo a vida a juntar farrapos desse manto em fogo.

O mundo é misterioso, cheio de gritos. A cada passo um túmulo donde renasce um amálgama, uma poeira verde, azul, doirada, cova onde o Desconhecido remexe formas: o mar, as cri aturas, as pedras, as tempestades, tudo vivo e a falar! O homem passa inconsciente, mas eu tremo de pavor.

Estas pobres criaturas que vivem no mesmo prédio em que eu habito, ladrões, filósofos, coveiros, mulheres perdidas, são esmagadas para que alguma coisa se crie. Geram o mistério e o mar bravo da dor. Sob a nossa vista indiferente a cada passo se cumpre um milagre: sol, água a nascer, pinheiros bravios e vivos!...

Escutai... As coisas choram. Nesta noite de frio inverno — ventania — o que as coisas dirão!... — o vento despedaça-as e é sempre triste ouvir cair tantas lágrimas.

Por momentos quedam-se numa quietação, como se ficassem a escutar ou a falar baixinho entre si...

Eu tremo e, para me esquecer, deito-me a escrever o meu livro A Árvore. E do lodo destas coisas humildes que eu construo a minha estátua disforme...

Ora uma tarde destas, embebido nos meus pensamentos como num largo horizonte, não reparei que pela porta aberta alguém entrara. De forma que tive um sobressalto, ao ouvir a meu lado numa voz pausada:

— Maquinações filosóficas, meu preclaro amigo...

— Hein?

Era o Pita, mas o Pita transfigurado e triste; o Pita com dentes de menos e não sei que doloroso sorriso; o Pita mais velho e mais sórdido.

— Maquinações filosóficas, meu preclaro amigo.

A realidade é triste e amarga. Isto que daqui vê e não compreende, árvores, montes e águas, é no fundo tão revolvido e espezinhado como o lodo humano. Vem uma raiz e despedaça outra raiz, um braço que se crie empurra logo outro braço. Cada monte gera tanto ódio como o coração do homem.

— Porventura o amigo já viu árvores ao pé? Eu só vi a do saguão.

— Sim, conheço-as não só dos bons autores, como de ter dormido à sua sombra movediça e fresca... São diferentes: são vivas e enormes...

— E o mar?

— O mar, que daqui vê ao longe, todo de poeira verde, é trágico e feroz. Brame de fúria, despedaça. É esverdeado e cheio de cóleras...

— E a Mãe, a natureza?

— Um amálgama, um cadinho cheio de gritos: formas revolvidas e trituradas, bocas que não podem gritar. Veja...

Para lá do Hospital havia ainda trémulos de luz, raios esquecidos de sol emaranhados nas árvores, presos nos espinhos do monte. Dir-se-ia no entanto que a vida redobrava; cresciam e murmuravam os pinheiros, gorgolejava a seiva ao trepar nos troncos. A água corria num ruído mais vivo, e a terra, que o sol queimara, bebia-a toda dum trago. As noras cansadas pingavam o seu último suor, e da noite que descera irrompia um murmúrio envolto em sombras, a voz das árvores, dos rios e montanhas.»

Capítulo V
História do Gebo

Por fim, na entrada desse frio e rigoroso inverno, já tinha vendido tudo. De envelhecido e gasto, di-lo-eis um trapo que se deita fora ou um doido de cabelos brancos estacados, a falar sozinho. Toda a gente o conhecia.

— Ó Gebo!

— Anh?

A mulher azedara com a pobreza e passava horas e horas a chorar, atirada para um canto, ou pregava dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho espezinhado, todos lavados em lágrimas. Se tudo acabasse!... Mas nem a Morte escuta os desgraçados, nem o tempo se apressa; vai moendo na sua mó as tristezas, as aflições e o pão negro. O desespero daquela criatura caía em impropérios sobre a cabeça do Gebo espantado, a suar, e a quem nem a própria desgraça conseguia empedernir o coração.

Todos os dias eram da mesma forma sombrios e tristes. Isto de chorar um dia e outro dia dá a impressão de que chove e se não sai do inverno. Outras vezes calavam-se, mas a discussão era talvez maior, era talvez pior... Existência sem cor, que se gasta fio a fio, em que a desgraça se assemelha à desgraça, os gemidos se não ouvem, em que cada um para o seu lado interroga a vida e as horas passam acinzentadas deixando-os todos três curvados, todos três absortos. Porque a vida interior nunca cessa, nem no sono — este monólogo com que a vamos comentando até ao fim, que não tem existência real e que é vivo e imenso. Nos homens e nos bichos.

Talvez também nas árvores. Nuns desvairado, noutros humildes, baixinho, quase pueril. A vida não é senão este monólogo furioso ou ridículo e mais dorido quando é concentrado e sem gritos... Mas ela não podia mais e irrompia:

— Deste, emprestaste a toda a gente. E agora?

— Agora? Riem-se de ti inda por cima, e ninguém te ajuda.

Morremos à fome.

— É o mesmo, mulher, é o mesmo. Paciência.

— O pior é de nós, de mim e da pequena.

— Pois é o que me aflige, que por mim quem me dera morrer!

— Não fosses tolo! olha os teus amigos como trepam.

— O mulher, mas que hei de eu fazer? Tu não me dirás o que hei de fazer?

— Roubá-lo! roubá-lo!...

Às vezes esqueciam-se e ainda palravam em torno duma esperança, a qual, agora nascida, logo a desgraça calcava. A mais humilde poeira de ilusão bastava para que todos três, gelados pela desventura, se sentassem na enxerga, prontos a edificar os mais altos castelos e esquecidos de tudo. Só a filha sofria em silêncio, magra e com um sorriso tão triste que lembrava certas horas em que há sol e chuva misturados. E como o Gebo lhe queria! Pelo seu destino que seria amargo, e por ser o único ser no globo que lhe não dizia más palavras.

Lá ia indo pela vida fora, coçado e com um ar de aflição que fazia rir. Parecia amachucado: as marcas dos encontrões nunca mais lhe saíam.

A mulher passava os seus dias numa luta desesperada com a desgraça, arrancando-lhe os últimos trapos, disputando-os um a um até vê-los desfeitos. Ao fim do dia ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua respiração — anh! anh! — sufocada.

— Aí vem ele... — murmurava.

O Gebo entrava e ela logo, sôfrega, morta por desabafar o que todo o dia ruminara:

— Até que vieste, homem! E então? Conta. Então há alguma esperança?

— Não há nada, mulher.

E sentava-se arrasado.

— Também, ninguém faz caso de ti. Que és tu?

Sabes o que tu és?

— Eu não, o quê?

— Um ente inútil. Não há ninguém que se não ria de ti, das tuas desgraças, das tolices que tens feito... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar?

— Eu sei lá agora do dinheiro! Não falemos mais nisso... O que lá vai, lá vai.

— Pois é o que tu queres... Mas hei de falar, hás de — me ouvir. Deste cabo de tudo, davas dinheiro a toda a gente... Tinhas-me a mim, tinhas a pequena.

Reparasses, era a tua obrigação.

— Ó mulher, ora tu que todos os dias vens com a mesma seca, Não me basta a minha aflição... De que serve isso agora?

— De que serve? Serve de muito!

À noite, à luz do petróleo, o Gebo fazia escritas com um cobertor pelos ombros e as mãos geladas de frio. A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a roupa, e a mulher ralhava, passeando na sala. Batia a luz do candeeiro na cara oleosa do Gebo, no nariz enorme, nos seus olhos tristes, e, do outro lado da mesa, só se viam iluminadas as mãos de Sofia, toda a noite trabalhando sem ruído e sem descanso...

— Já tive uma letra tão linda e agora... Os desgostos cansam a gente.

— É de ti! é de ti! Outros têm penas, desgostos, caem e tornam a levantar-se... — dizia-lhe a mulher.

— Têm sorte, é o que é. Para tudo é preciso sorte. — E curvado sobre os livros contando, murmurava mais baixo:

— ...E vão sete — ...

— Sorte! sorte! A culpa é tua que não tens energia nenhuma. Procura! Deixas-te ficar espapaçado para aí...

Tu o que queres é comer e dormir.

— Ó mulher!... — E erguia o carão aflito, onde batia a claridade de chapa. Viam-se-lhe os olhos aguados. — O mulher, a gente também perde as forças... Sempre a desgraça! sempre a desgraça!...

— Tudo nos corre torto!

— Mas...

— Tudo! Deixa-me!...

E desatava a chorar. Então o Gebo, aflito, a mão curta e gorda ronronando no papel, mentia para lhe dar ânimo.

— Qualquer dia entro aí num negócio, tu verás...

Não te aflijas. — E vão cinco... — Também há de chegar o nosso S. Miguel. A desgraça há de se cansar de nos perseguir.

E o pão que trazia para casa era quase uma esmola.

Mas tanto mentia que chegava a iludir-se. Às vezes não sabia o que havia de dizer. A desgraça gasta; a desgraça gasta até o sonho grotesco dos humildes. E elas caladas olhavam e esperavam; pareciam suplicar-lhe: — Mente! ao menos mente!

— E o velho inútil lá procurava um sonho ainda que fosse usado.

A velha reanimava-se. E outra vez passeava na sala, embrulhada no xaile rapado.

— Não, que é preciso sairmos deste atoleiro.

— Agora vai, agora vai, tu verás. Ando aí com um negócio... Sabes tu que mais?... Deixa-me trabalhar.

Sossega.

— Nem na cova!

Ia a mãe deitar-se e Sofia, até aí silenciosa, dizia erguendo-se:

— Pai, não se aflija.

— Eu não, filha, eu não. Aquilo é génio, coitada.

Ela tem razão, tem sofrido muito. Vai tu também pra a cama. Dá cá um beijo... Assim. Eu fico com a escrita.

— Boa noite.

Sozinho o Gebo cismava muito tempo, olhando a luz. Depois, horas e horas, ouvia-se a pena correr no papel, parar, tornar... — E vão cinco, e vão sete... noves fora nada... — até que a vista se lhe toldava, e a desoras, embrulhado no cobertor, tombava sobre a mesa, soluçando:

— Não posso! não posso mais! E tinha uma letra tão linda!...

Na própria desgraça caem por vezes resquícios de sol. Houve tempo em que respiraram. Tinham-lhe dado escritas, mas faltava a luz dos olhos, e a vida de expedientes tornara, mais aziaga. Achavam-no ridículo, ninguém o tomava a sério a esse homem gordo e chorão, que vivia com esta pedra a moê-lo e a gastá-lo — a sorte da filha.

Quase sempre ao deitar falavam da filha.

— É o que nos vale, a nossa filhinha.

— Sempre nos dá mais ânimo.

— É tão boa, tão nossa amiga!...

A velha trabalhava, ruminava projetos desconexos para enriquecerem; a roupa andava defendida e cuidada até às últimas. Luziam as coisas e quase não comiam para poupar, sobretudo ela que tudo guardava para o Gebo e para a filha.

— O homem, mas então? Toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa torta!

— Deixa estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas.

— Ora não vão, não vão!...

— Era ela afinal que o empurrava, àquele ser gordo e inútil. Fortalecia-o.

— Por vossa causa é que eu luto — dizia ele sempre.

— Não posso mais!

E não podia. Porque até o sonho mesquinho dos desgraçados se estanca, porque até aos desgraçados chega o momento em que não lhes é dado sonhar. Os pobres contentam-se com pouco — tudo lhes serve, qualquer fio lhes basta, e fazem esforços desesperados para o manterem vivo. Mas a desgraça seca, e o Gebo, que não tinha imaginação, não podia sonhar: o que ele queria era dormir, dormir aniquilado, num sono profundo de morte. Os outros não lho consentiam, debatiam-se ainda, e a velha teimava em resistir à desgraça, em iludir-se até à última, até cair por terra, exausta, exigindo-lhe todos os dias uma mentira para alimentar o seu sonho, teimando em defender até aos últimos restos de uma vida imaginária. — Então? então?... — interrogava, cada vez mais ansiosa. Mas o Gebo já não sabia, o Gebo já não podia mentir. E a necessidade de inventar todos os dias tornava-se-lhe tão dolorosa, mais dolorosa ainda, do que a de pedir esmola. Aquele homem gordo, ao chegar a casa, procurava o dinheiro no bolso e algum resto de sonho para atirar à mulher alta, seca, nervosa, de olhos fixos nele: — Então? então?... — Nada, nada... — Mas mente!

Ao menos mente! dizia o silêncio, diziam os olhos ansiosos, dizia a atitude da mulher imobilizada diante daquele ser atarantado, cada vez mais grotesco, diante da desgraça cada vez mais próxima. Então nada! então só ele não percebia que ninguém pode viver neste mundo sem sonhar, e quanto mais pobres, mais necessário se torna juntarem-se e arquitetarem uma mentira, como friorentos à procura de lume!...

No seu caminho só encontra desgraçados e todos os desgraçados procuram iludir-se. O seu convívio é com seres quase tão grotescos como ele e que só se fartam de ilusão.

À tarde o Gebo vai para uma loja conhecida onde se juntam os comerciantes falidos e os professores sem discípulos, desesperados por terem perdido tudo menos a faculdade de sonhar. Um a um canto, calado, com as mãos sobre o castão da bengala e o queixo apoiado nas mãos, escuta. Escuta ou sonha?... Outro fala sempre, maneja cifras como um prestidigitador, e está ao facto de todos os negócios que se fazem na praça. E há outro a quem o dinheiro não interessa. Já tem enriquecido e empobrecido umas poucas de vezes, sempre com a mesma indiferença e o mesmo casaco verde; o que o interessa são as empresas, os planos, as aventuras irrealizáveis. E aquele encostado ao balcão, magro e sereno, só intervém com palavras decisivas e todos se afastam dele: têm a especialidade de meter no fundo os negócios em que entra, por melhores que eles sejam.

Todos trazem letras na algibeira, papéis que ninguém desconta, combinações esplêndidas para enriquecer. E falam muito, enganam-se uns aos outros, não por mentirem, mas para tornarem mais visível a sua aspiração, o sonho escondido e inútil. Só o Gebo não pode mais e olha-os num mudo espanto.

— Oh como eu sou feliz!... — exclamava um deles.

— Agora tenho aí um lugar...

Nem sequer o escutavam e, se um saía, diziam os outros:

— Cuido que está cada vez pior.

— Um homem que teve um crédito na praça!

— Tem a fome à porta.

— Coitado! Eu agora é que trago entre mãos um negocio...

Vivem iludidos e tombam no sepulcro gastos e com a cisma em maravilhosos lucros. E não têm porventura razão? Não vão amanhã quinhoar dessa larga e misteriosa empresa — a Morte?

Capítulo VI
Filosofia do Gabiru

É que tu acreditas na imortalidade da alma? Bem fundo, bem arreigado?

Tenho horas em que creio: é uma esperança, um raio de luz entrando num túmulo vazio pela junta abalada duma pedra. Porque crer? porque não crer? Teorias, palavras... No íntimo, porém, sou materialista como toda a gente. Dormir na terra funda e gorda é bom — dormir para sempre. Ir ser árvore, luz, detrito, correr nas veias da terra, e quase consolador — excelente sono sem sonhos, depois da lide canseirosa dum dia.

Na primavera quase sempre sou materialista, no inverno idealista e com a mesma sinceridade, quase com ferocidade.

Ser só, sem amigos, sem apertos de mão, sem conhecidos, ser só e livre, que sonho!...

Ser só por cobardia, para não ter este aguilhão da vaidade a espicaçar-me: — Então tu não fazes, e este, aquele, o diabo, fizeram! — Ser só para sonhar e para ver este espetáculo único — a natureza; para passar os meus dias vendo as transformações duma daquelas árvores que daqui contemplo!...

Quando me fecho e estou só, sou tão diferente!...

Como o homem é desconhecido até de si próprio, porque o tempo passa, vem a morte e ele não esteve sozinho! Se estou só vêm falar-me vozes — eu mesmo — mas com que palavras únicas! Os seres de que sou composto, se me habituo à solidão, nos primeiros tempos balbuciam, mas depois falam! pregam!...

Tenho a certeza de que fui árvore e é por isso que tanto as amo.

Há livros que falam baixinho, há livros que falam alto. Uns têm por si o encanto, outros a força. Às vezes as palavras murmuradas impressionam mais: passado tempo ainda elas acordam em nós fibras adormecidas.

Porque é que a água, até o mais humilde charco, atrai e faz sonhar os homens contemplativos?

Quanto mais desprezo o homem, mais amo a natureza. Ela é inalterável.

O homem prende-se com muitas coisas inúteis: a riqueza, a ambição, interesses mesquinhos: vive emaranhado numa teia. De forma que não tem tempo de ver, nem de ouvir, nem de se conhecer. Quantas criaturas existem que nunca olharam para o céu? A natureza, árvores, montes, rios, esse pélago que entrevejo do meu quarto deixa-os indiferentes; as horas de preguiça e sonho deixam-nos indiferentes. Nunca tiveram tempo para amar as coisas simples e grandes da vida. O que é eterno não no viveram. Por mim antes quero comer pão e cismar, deixar correr as minhas ideias como um regato corre — até onde tem água. Alguns morrem sem terem reparado que existiram.

E por isso que eu corto sempre com tudo que me não deixa sonhar — e que quando encontro razões para acabar com um amigo tenho um suspiro de alívio.

Habituar-se a gente a viver com ideias simples é como habituar-se a andar com fatos velhos e rotos.

Indigna os outros. De forma que tem de se viver arredado.

A morte aterra-me pouco. Porquê? Porque só penso na morte como numa divida distante. Fica muito longe ainda.

Há horas, porém, à noite, de súbito, em que, sem ligação, essa ideia rapidamente me toma e abala até às mais recônditas fibras. E sufoco aterrado.

Com que facilidade se matam até os entes mais queridos!... Quantas vezes me surpreendo a assassinar ou a desejar a morte — é a mesma coisa, com este acréscimo, a cobardia — de pessoas que sofreram por mim! Por a menor causa, por o mais leve transtorno, o primeiro pensamento é este:

— Se ele morresse...

É claro que protestas logo. Protesta o teu coração, a tua educação, os teus hábitos e até a tua hipocrisia.

Mas se deixares trabalhar a imaginação à vontade, sem peias, é uma hecatombe — por futilidades.

Capítulo VII
Primavera

O Gabiru sentiu-se aquecido, como a terra quando vem a primavera. Ia criar! ia criar!... Aquele chão que só o arado do sonho lavrara, ei-lo atravessado por este veio turvo, que tudo remexe e transforma — a vida.

Consumira-o o sonho, tornando-o cambado e gasto, esguio e de olhos perdidos de cisma... Acordara enfim para a realidade e ele, que tinha passado a vida a revolver um brasido de ideias, longe da terra e do seu lodo, amou a Mouca, rasa como o chão. Todos se riam dela, magra e pálida, de pacho num olho, com um ar de máscara que vai gritar de aflição.

O seu ideal prendera-lhe os olhos tal qual no-los prende o lume, de forma que, ao erguê-los, dera de cara com a vida e perguntara: Que é isto? o mundo, a tempestade, tudo o que do cubículo vejo, arfando ao sol, penetrado de ruídos e de sombras? Para lá, para além, árvores acenando-me com os braços, vozes de águas fartando as terras embebidas? Isto?... Tudo é luz, é um chama? E como tudo é belo!

Ver ao pé árvores e montes, a esse esguio filósofo habituado a conviver com velhos cartapácios, parecia-lhe tão irrealizável como subir às estrelas. Nos alfarrábios fala-se de tudo menos da vida. Por isso, acordando espantado, interrogava as ondas luminosas, os rios correndo, o extraordinário mar: «Vós que me quereis?» E no alto da mansarda sorria, pencudo e triste, esguio como um enterro.

— Porque a amas tu, filósofo?

— Sei lá! Amo-a. Dá-me vontade de chorar ao vê-la.

Amo os seus olhos tristes, o seu feitio de cão espancado. Amo-a, porque qualquer outra me desprezaria, envelhecido a sonhar. Ela é parecida comigo, talvez tenha pena de mim.

Todos somos construtores. De terra e de emoção andamos pelo mundo a amassar estátuas; de realidade e de sonho arquitetamos as figuras que se misturam na nossa vida. Elas existem mais pelo que lhes damos de nós mesmos do que pelo que na realidade são. De saudade, de sonho, de lodo e piedade, construíra uma figurinha ofendida e triste, andando no mundo aos tombos, sem pão e sem abrigo. A ele que passara a vida inteira a atear um brasido, cabia-lhe em sorte a Mouca, escárnio de ladrões e de soldados.

A casa das mulheres de dia é fúnebre, mas de noite, à luz do petróleo que esvoaça e deixa tudo numa meia tinta de aflição — candeeiros partidos, luzes fumarentas — lembra um circo de desgraça, onde palhaçadas trágicas façam gargalhar e onde os ladrões e as mulheres enfarinhadas representem a sério vícios e crimes, com risos e choros à mistura, para que o público que paga se possa rir. Vem um Velho, que sem falar gargalha toda a noite ao vê-las maltratadas, e o Morto, pálido soturno, com um laivo na cara. Tem as mãos ósseas e enormes sempre frias e as mulheres temem-no pela sua crueldade e pelo sorriso trágico. Despreza a dor e os gritos.

Sente-se que dele não há a esperar piedade. Só a Mouca se atreve a resistir-lhe. Aparecem outros e toda a noite se ouvem insultos, choros, gargalhadas.

Cada um ali arranca a máscara, transforma-se, fica um ser nu: as feições endurecem, o riso é atroz. O homem tem vontade de ouvir gritos. Paga, maltrata. É lodo, não há que ter piedade. E as mulheres cantam sempre na mesma toada triste e soluçante... Nenhuma fala do passado, com medo ao escárnio, mas guardam-no para si, sem o esquecerem. A história é idêntica e amassada em lágrimas. Elas sabem que nasceram para sofrer e resignam-se: o esgoto é necessário. Tudo na vida se alimenta de gritos, como as raízes na terra se sustentam de água. Enganam-nas e não se queixam. É o fado. Não têm ódio a quem as iludiu: ao contrário, não esquecem esse fio de sonho espezinhado, que ainda sentem correr na vida, longínquo e triste, quase a sumir-se de todo. O Fado as faz nascer e as traga. Triste é sempre a vida — lágrimas, pancadas, pão, e assim as leva a sorte até à cova. Ouvi: esta seiva dolorida fará nascer um dia alguma misteriosa Árvore.

São unidas, sustentam-se na desgraça. Os amantes moem-nas e elas humilham-se, tão triste é não ter ninguém a quem amar. E as desgraçadas, aquelas que, de confundidas com a lama, se não enxergam, são as que de todo se sacrificam por eles. Míseras criaturas, a quem se paga com injúrias, quanto mais afundadas na desgraça e mais pobres, quanto mais perto da enfermaria e da morte, mais sentem a necessidade de amar. Ficam dias sem pão para que os amantes o tenham. Tiram a última camisa do corpo para lhes dar de comer. As arroladas matam-se se as desiludirem. Seres de ignomínia só amam idealmente. Assim será o amor das ervas, dos sapos, das nascentes, de tudo o que na natureza é pequenino ou disforme. O Sonho para o esgoto é a única realidade.

A casa é trágica, de tetos negros, sumidouros, corredores onde toda a gente agoniza uma luz de petróleo.

Há mulheres tísicas, com tosse e a tábua do peito rasa! há-as que insultam quem entra para serem espancadas. A filha do Gebo, Sofia, é alta, curva, cansada, e tão cheia de resignação que perece morta; outra, Luísa, a quem chamam a Asilada, quase não fala.

Olha soturna, com os negros cabelos violentos todos soltos e a fisionomia empedrada de mágoa.

Ao fundo divide a casa um corredor com cubículos.

Às vezes, altas horas, tudo sereno, ouve-se na escuridão um ruído de choro sufocado.

Fora vê-se o hospital e a rua negra, onde o enxurro humano sem cessar carreia detritos, lágrimas, sonho.

Especadas às esquinas criaturas esperam... Parecem pedaços de noite destacados da própria noite. Fazem-lhe nicho as arcarias e arrancam à treva, para se embrulharem, um farrapo do seu manto. Às vezes da escuridão sai um perfil, mãos que querem arrepelar, mas logo tudo se some entre roupagens, que têm a rigidez trágica das estátuas. Só a mão, que o lampião ilumina, fica decepada. Por vezes toda a figura baça e amolgada surge, para logo se aniquilar. A lama faz-lhe pedestal, passa o enxurro, e elas nem se mexem, petrificadas.

Algumas, de viverem dum passado de fogo, parecem mirradas, outras procuram minguar, extinguir-se, não ocupar lugar na terra. E entretanto as mulheres vão cantando na mesma toada de catástrofe, que a noite traga, como farrapos de sonho espezinhado...

Todas as noites o Gabiru lá vai sentar-se a um canto a cismar. Olha a Mouca sem palavra e sonha. Conhecem-no os ladrões e os soldados, e elas, vendo-o entrar, esgrouviado e triste, exclamam:

— Lá vem o enguiço!

A Mouca às risadas diz:

— Cá temos o enguiço!...

Mas em vão! Ele, com as enormes pernas dobradas, alheado, sem ver nem ouvir, pensa num amor ideal e monologa baixinho, entre as mulheres, os ladrões e os soldados:

«O que eu sonho! Eu que sou tão tímido, ponho-me a falar e a cismar... E tanto cismo!... Troco tudo...

Como é que tu gostas de mim, que nem te sei sorrir?

Ando a inventar uma língua nova, que seja como a das fontes e a das árvores, quando desponta Março, para te exprimir o que sinto. Todas as palavras me parecem mirradas e servidas.

Olha, diz-me: chamas-te Maria, não é?» E entretanto os ladrões e as mulheres conversam:

— Tu não te calarás, estupor!

E uma tísica, magra, só com a pele e o osso, explica:

— Uma mulher da vida... Que estão vocês a dizer das mulheres da vida? Eu inda queria ver... Quando tu não tens pão, quem to dá?

E o ladrão responde:

— És tu.

— O pão que eu ganho com o meu corpo, com quem o parto?

— Comigo.

Mas outra do lado berra:

— A gente aqui é como os cães. Toca a rir, raparigas!

Se uma mãe adivinhasse para o que cria aos seus peitos uma filha!... — E virada para um que entra! — Olha lá, ó coisa, puseste-me o corpo negro noutro dia... Tu imaginas que uma pessoa é de ferro?

— Abaixo as patas!

Uma mulher pergunta a um velho ladrão calvo, que a um canto ri, com a boca disforme, escancarada na sombra:

— Tu que eras, ó velho?

Mas ele ri-se com a boca aberta saindo do escuro — só boca — como a fauce desdentada dum lobo, e um outro é que responde:

— O velho era lavrador. Olhai-lhe pra as mãos.

Cheira a terra e a pobre.

O filósofo, a um canto, cisma, olhando a Mouca entretida a falar com os soldados:

— «Tenho muito que te dizer — tanto!... — e não sei o que te hei de dizer!...

Se me perguntam: — Tu que tens? — parece-me que acordo e que me puxam para a terra.

As árvores levam todo o inverno a sonhar inchadas e um dia acordam desfeitas em sonho. É o que lhes acontece.

Ora vem aí Março, já rebentaram novas fontes...

Maria é um nome tão lindo!» Falam aos grupos, num burburinho. Andam todas mal vestidas e com frio. Uma traz meias amarelas e outra, a quem a tosse desconjunta, cobre-se com um xaile de seda que a não aquece.

— E tu que eras?

— Eu nada. Basta de conversas. Dás-me um beijo?

— Tira-te! A ti um beijo!... Antes queria morrer.

Nem morta eras capaz de me dar um beijo. Com essa cara! Olhai pra ele, raparigas... Já viram alguém rir-se assim?

— O minha arrolada!

E deu-lhe um pontapé.

Entretanto duas mais afastadas conversam no escuro:

— Nesse dia tomo um bebedeira, que há de dar que falar.

— Tu?

— Sim.

— A mim minha mãe é que era a capa. Encobria-me.

E ninguém se importa com o Gabiru, que tece, vai tecendo a sua teia, toda de emoção e de nuvens, encolhido a um canto, absorto, sem ver nem ouvir:

— «Não sei bem o que sinto, que nunca me vi assim.

Do meu coração sai uma bica que rega as coisas mais secas. E ouço! o que ouço!... Ao luar, lá em cima, ouço as montanhas em diálogo e falarem árvores e pedras!...

E a tísica, voltada para o ladrão, diz-lhe:

— Que queres mais que te eu dê?

E ele, rindo:

— Ora! dinheiro...

— Nem pra pão já o tenho, quanto mais!... Já o não ganho. Quem me quer, se todos dizem que estou tísica?

Estarei...

— Tu arranjas sempre.

— Aonde? os meus trapos estão no prego, este xaile é emprestado por misericórdia. O lenço que ontem trazia, vendi-o pra pagar à patroa. E amanhã entro para o Hospital.

Ele lentamente ergue-se para sair. Quase à porta murmura:

— Bem sei onde ir buscá-lo.

Magra, desconjuntada, a tossir, a tísica exclama:

— Pois vai! vai!... Se outras te dão mais, vai!...

Deixa-me!...

— Pois vou...

E logo ela, arrependida, torna:

— Espera. Dei-te tudo. Escuta... Tens sido como quê? com um filho meu... — E para as outras com um amargo sorriso: — Ó raparigas, quem há aí que me empreste algum dinheiro pelas almas?

Uma abaixa-se. De entre a meia e o sapato tira uma moeda, e a tísica, estendendo a mão:

— Já a não ganho com o meu corpo.

E beija as cruzes ao dinheiro.

— Toma.

Dá-lha e baixinho pede-lhe:

— Antes de eu morrer, prometes que me vais ver ao Hospital? Todos dizem que estou tísica. Não é por nada, mas vai-me custar morrer, sem ver ninguém ao pé de mim... Quem hei de eu ver? Agora olha como te portas sozinho, ouviste? Inda te levam para o chilindró. Vocês, em se pilhando à solta, adeus meu amigo!... Entro amanhã de manhã para o Hospital e na quinta é dia de visita. Não te esqueças de mim, ouviste? A gente prendesse e depois custa-lhe. Ora! que é que eu faço neste mundo!... Tu há bocado disseste que bem sabias onde ir buscar o dinheiro. Era à Gorda, pois era? Podes dizer, que eu bem sei. Estou pronta! Sou um cangalho, só sirvo de tropeço... Mas olha que fui sempre tua amiga. Já agora deixa-me acabar, pra lhe não dares esse gosto... Só te peço uma coisa... É que me vás ver antes de eu ir pra a cova. Pra a terra! Isto de a gente morrer sem mais nem menos até me parece esquisito... Que haverá no outro mundo?... Estou pronta. O médico ontem disse: — Estás pronta! — E atiram assim com a gente pra o cemitério!...

Eu ainda queria que me dissessem o que é que a gente cá vem fazer...

— Sei lá!

— Chorar. Só se for... E levar má vida.

Apertando-lhe as mãos, envergonhada:

— Então vê lá se te esqueces de mim.

— Agora!...

E ela, sorrindo com um sorrir triste que lhe ilumina a boca descorada como um reflexo de sol:

— Agora! é o que vocês sabem dizer. Os homens são todos o mesmo, falam todos pela mesma boca. A gente, coitada, prende-se, mas vem a morte e tudo leva consigo.

O Gabiru, desenroscando as pernas, ergue-se e murmura de si para si:

«Que tempo este em que estamos! Parece feito de emoção... E tudo vai sonhando o seu sonho, que eu bem sei, bem no sinto nas árvores, nas pedras e na terra, até na terra mirrada... E eu tanto te queria dizer! tanto!...

Olha, sempre te chamas Maria?»

Capítulo VIII
Memórias de Luísa

É assim a história duma das mulheres.

«Tive sempre frio. Esta impressão de ter os ossos gelados vem de muito longe, de pequenina.

Nunca tive mãe, nem ninguém. Fecho os olhos e só vejo o Asilo, os corredores húmidos, o dormitório, o frio refeitório abobadado de granito. Toda aquela pedra parecia sepultar-nos.

Também guardo de pequenina esta impressão: a vontade que tinha de beijar, sem ter ninguém a quem dar beijos. Todos os que eu conhecia eram hirtos.

Vou ver se me lembro bem... Primeiro é tudo confuso: depois vai-se espancando a névoa e eu recordo a triste existência do Asilo.

Noite ainda nos erguíamos para rezar. Tocava um sino. Mal sabíamos andar, trôpegas como velhinhas. A algumas era preciso vesti-las. A Irmã ralhava se nos demorávamos. Aquele sono da manhã de que nos arrancavam era como a cova e o esquecimento. Antes nos deixassem dormir para sempre. Para que vem a gente ao mundo?

De tantas que conheci, quase todas, mais felizes, morreram por não terem mãe.

Todas, tão pequeninas, tinham o ar de serem já crescidas. E não sei que de amargo, de refletido, de sofrimento, de experiência da vida. Brincavam sem risos pelos cantos, com bichos, com pedrinhas. Uma vez uma disse alto:

— Ó mamã!...

E foi um escândalo. Onde aprendera ela, que não tinha mãe, a pronunciar aquela palavra?

Quereis crer? Só tenho esta imagem: pareciam velhinhas recolhidas, tristes por não terem filhos.

E no entanto eu curto saudades dessa negra existência do Asilo.

Na cerca havia um curral com vacas, que nos davam um leite aguado. Duma vez uma, já eu era grande, toda a noite gemeu. Por piedade perguntei ao hortelão o que ela tinha.

— Soidades por lhe levarem o filho.

E há mães que os deitam fora!

Muito deve custar a morrer a uma mãe que deixa no mundo um filho para o Asilo!

Havia as grandes, as médias e as pequenas. As grandes eram desajeitadas, de mãos enormes, com vestidos negros e grossos. E todas eram feias. Faltava-lhes não sei que graça, que só existe nas que têm mãe, por mais feias que sejam: seres de abandono, plantas que vivem estioladas...

Às vezes o senhor provedor visitava-nos. Era um homem seco, ríspido, de cara rapada, que nos vinha lembrar que vivíamos por esmola:

— É preciso que se recordem disto: a sua vida devem-na aos benfeitores.

Ele próprio era um benfeitor. O seu retrato lá estava colocado ao pé dos outros, com o mesmo caixilho fúnebre. Era o último da sala enorme, gelada, onde os passos ecoavam, toda cheia de retratos em torno. Os benfeitores!... — Dir-se-ia uma galeria de afogados, todos solenes, secos, hirtos, de lábios finos e ar de cerimónia.

Todas as noites as Irmãs nos faziam rezar por eles, a quem devíamos o pão e a vida.

Era proibido falar, a não ser às horas do recreio, e isto explica talvez os vincos que todas tínhamos, ainda as mais pequeninas, aos cantos da boca.

O melhor sítio do Asilo era a enfermaria, por isto: era mais quentinho; dava-lhe o sol todo o dia e viam-se as árvores da cerca; e por a Irmã enfermeira ser a única que tinha coração e que gostava de nos beijar. Todas éramos amigas dela.

É curioso. Lembro-me das grandes árvores que de lá se avistavam, mas só as recordo descarnadas e despidas, num céu pálido. Sempre no inverno.

Tenho ainda a impressão de ter os joelhos frios e doridos. Nunca mais consegui aquecê-los.

O pão do Asilo tinha um sabor que nunca encontrei em outro pão, por mais desgraçados que fossem os meus dias: um gosto amargo e requentado.

E em todo o refeitório havia um cheiro idêntico.

Todo, até o Cristo, até o caldo aguado, a mesquinha ração que nos davam, parecia dizer-nos:

«Olhai que viveis por caridade! Habituai-vos à desgraça!

» Quereis crer? Muito mais caridoso seria afogar as crianças que não têm mãe. Livrá-las-eis do Asilo, da caridade, da vida.

No dormitório tudo era regular, branco e monótono, e, apesar de branco, fúnebre. O sol, que entrava pelas janelinhas, abertas numa muralha de prisão, era pálido e, mesmo de verão, parecia um sol de inverno; as camas, todas de branco, alinhavam-se encostadas às paredes caiadas e nuas; só no fundo, por cima da cama da Irmã, um Cristo de louça azul manchava aquela brancura.

O recreio não era na cerca do convento. Brincávamos sem barulho no claustro. Parece que tinham medo de nos mostrar árvores e sombras. O claustro...

Por cima via-se sempre, engastado no beiral, um retângulo do céu, e a sombra geométrica estendia-se cá em baixo. Dum lado era sempre frio e húmido: as paredes tinham musgo. Ao meio do claustro um golfinho de pedra deitava gota a gota, pelos dentes cariados, um fio de água frígida. De tudo aquilo saía uma paz transida de sepulcro.

Só andorinhas cortavam em cima o céu, mas duma vez que em Março vieram, afadigadas e chilreando, fazer ninho no beiral, as religiosas deitaram-lhos abaixo.

Destruí-los porquê? Os restos, farrapos de penugem quente, ternos diríeis, andaram por muito tempo no claustro. Passaram de mão em mão com alvoroço.

Algumas das asiladas cismavam, olhando-os: as mais pequeninas brincavam com eles. Uma disse:

— É um berço...

Destruí-los porquê? Para que não soubéssemos que as aves têm mãe e cuidam dos filhos? Para que não tivéssemos saudades das nossas, que não conhecêramos?

Para que ignorássemos?... Mas que candura a das Irmãs se era por isto! Nós pressentíamos, adivinhávamos tudo aquilo e quando uma das mais pequeninas explicou às que faziam roda: — É o berço dos passarinhos... — quantas de nós já tinham cismado num berço assim agasalhado e fofo!...

Daquela vida idêntica, seca, dura, vinha um dia, quando éramos grandes, arrancar-nos o provedor.

Era um dia solene. Íamos partir. Quem precisasse duma criada que comesse pouco procurava-a no Asilo.

Uma caderneta, papéis, alguns trapos, camisinhas curtas e o discurso do senhor provedor:

— Sustentou-as este Asilo por caridade. Se vivem, devem-no aos benfeitores. Ora agora lembrem-se sempre nas suas orações do bem que lhe fizeram. E na casa que as recebe sejam agradecidas. Tomam-nas por esmola...

E assim, com uma trouxa debaixo do braço.

Partíamos para a vida.

Oh! minha mãezinha!»

Capítulo IX
Filosofia do Gabiru

Ter os mesmos direitos que as árvores e os bichos à imortalidade humilha-me, e fazendo-me humilde torno-me melhor, mais irmão do que é pequeno e desgraçado.

Só as criaturas que sofrem é que são dignas de viver, e na verdade são as únicas que vivem.

No tempo infinito e no espaço limitado as moléculas agregam-se, desagregam-se... Só química, só a química existe... As moléculas, que têm em si a força vital, são hoje árvore, amanhã animal, pedra, homem.

Conforme o quê? o que é que as modela?...

Eis-me: eu fui e continuarei a ser neste oceano trágico o que o acaso determinar, conforme as minhas moléculas, amanhã desagregadas, se unirem a outras mais tarde... Tenho vivido até aqui — continuarei assim pela eternidade.

Quando pois me chegar a vez de ser homem. hei de viver: quero viver da minha própria vida; quero que fale dentro em mim o universo que eu já fui — a pedra que eu já fui — a árvore que eu já fui — o bicho humilde que eu já fui...

A tua opinião?... De que me serve? E é ela tua, sente-la bem tua, ou é aprendida, falsa, vinda de outros homens que me querem esmagar?...

Qual deve ser o meu fim? Deixar falar todo o universo que compõe o meu ser, deixá-lo pregar com a sua voz rouca — com a sua própria voz e não com a tua.

Se eu trago ódio, deixai-me ser o Ódio; se eu trago riso, deixai-me ser o Riso.

O momento é único, não vale perdê-lo. Por que acaso, por que fúria insana, depois de que rebeldias, de que horas ou séculos de aguilhão, de desespero e raiva, estas moléculas, perdidas num oceano maior que o atlântico, tornarão a ser, se chegarão a reunir para terem a consciência do Universo? E agora vens tu, homem, e queres emudecê-las com as tuas leis, as tuas teorias, os teus sonhos...

O momento é único: vai perder-se amanhã. Séculos de canseira para terem num minuto a consciência do universo; séculos de sonho tremeluzindo no fundo da obscuridade, para não virem afinal à luz, séculos de amargura, de esforços, de tentativas abortadas — para não chegares afinal a viver. É como ir a uma árvore e arrancar-lhe toda a flor...

Mas olha: tudo é feliz em torno de ti, porque tudo cumpre o seu destino. Cumpre tu o teu. Tudo é harmónico, porque vive da verdadeira vida: as plantas crescem sem que as outras lhes imponham regras, os animais, a natureza inteira, não têm remorsos nem dúvidas. Nem tu as terás, se viveres de tua verdadeira vida e não de outra.

A tua educação deve consistir nisto: em fazer falar o universo que trazes contigo, com a sua voz.

Arreda, mata, calca tudo o que te contrariar nisto.

Sabes acaso daqui a quantos séculos tornarás a ter consciência? E que forças perdidas, que lutas não vão ser necessárias?... Quantos gritos!...

Goza tudo: a desgraça, a fome, a terra, o sol, o riso, porque nunca voltarás a sentir senão numa infinidade de séculos. Impregna-te de vida, do teu largo quinhão de vida, para que às portas do Nada possas dizer:

— Vivi!...

Estão em primeiro lugar os deveres para contigo do que os deveres para com os outros.

Deves amar os rios, porque já foste rio; os montes porque andaste nas suas entranhas; a nuvem tua irmã; a árvore onde correste em seiva — e o homem porque és o homem.

Se te não deixam ser o que deves ser — resiste.

Mais vale morrer do que não lutar. Morrendo, triunfarás porque cumpriste o teu destino.

Tu és feito de húmus, tu és feito de terra. Se ela te deu boca, para que foi? Para que falasses. Com que fim cria tantas bocas? Para que ao fim de mil tentativas se digam as palavras necessárias... Nesse dia tudo terá voz.

Na verdade não haverá fonte, árvore, bicho por mais esquecido, pedra por mais ignorada, que não tenha voz e não faça a sua confissão.

A educação moderna, ao contrário, tende para isto: para que todos falem no universo da mesma forma.

Nasce connosco o destino. Não o cumprir, seja qual for, é ser desgraçado.

Cada criatura que nasceu ontem há quantos séculos anda a ser gerada? Sabei-lo...

Não contrariem a vida. Nós somos uma torrente, que Deus criou para um fim... Assim nascerão criaturas que incarnarão o Mal, dirás... Pois que o mal tenha também a sua boca e que fale sem gaguejar.

Se a natureza cria monstros, é que eles são necessários, como certas pústulas que purificam.

Nunca os tigres afinal venceram.

E de que te serve andares mascarado?...

O homem tem em si partículas de tudo o que no universo existe: metais, pedras, etc. É um universo reduzido. Conforme nele predominam determinadas moléculas, assim odeia ou ama.

Quando é que a química será tão grande, que possa fazer esta análise?...

Há pessoas que nunca nos fizeram mal e a quem odiamos. Nunca? quem sabe?... Se há um infinito que tu vives, se tu exististe sempre e és eterno.

O que é a piedade sincera, abaladora, interior? Uma reminiscência.

Fujamos da terra, dizem-te. Não, bem preso à terra, a terra subtilizada que tu és, a terra tua mãe. Essência da terra, trabalho insano do seu ventre durante séculos e séculos, homem não a renegues! Ama-a, ama a vida. Tu és talvez o sonho da terra. Ela pôs em ti toda a sua emoção, toda a sua maternidade, toda a sua dor e também tudo que tinha de imaterial; deu-te o sonho. Sê bom, se ela to ordena, sê mau se ela o quer.

No mundo correm e entrechocam-se grandes rios de moléculas — que são rios de ódio, outros que são rios de amor, outros que são a amargura, o riso, o sonho...

Há dias em que a gente se sente responsável por todo o mal que se faz na terra.

Capítulo X
História do Gebo

Ele aí vai aos tropeções, amachucado e ridículo — e as lágrimas no seu carão espantado só nos fazem rir.

Empurra-o a Vida, atira-o, estatela-o no lajedo, aflito, sem mão que o ampare e de cabelos brancos estacados.

Gritam-lhe:

— Ó Gebo! ó Gebo!...

Não há que ter piedade dos fracos. A própria natureza os repele do seu seio.

Faltava-lhes tudo, tudo se esfarrapava no seu lar.

Dormiam em enxergas no chão, nessas noites de frio inverno. O que mais lhe custava era ver a filha horas e horas a cismar. Em quê?... Por ela é que se batia ainda com o destino. E quase não tinha pão para lhe dar!

A mulher clamava:

— Mas trabalha! tu não trabalhas!... Tu o que és um mandrião. Olha os outros como furam, como sobem...

Tu és um estúpido! Na vida é preciso ter-se muita finura.

Quem é assim não se casa!

— Ó mulher, a gente quando cai nunca mais se levanta.

E afinal caíra para sempre, sem energia e sem forças, prostrado. A sua vontade seria deitar-se e nunca mais acordar. Correra tudo, batera a todas as portas e assim se afizera à humilhação e à esmola; a ser mal recebido, a ouvir repostadas que ferem e despedidas bruscas. Os amigos, que a princípio lhe davam para o rebaixar, falavam-lhe agora com pedras na mão:

— Volte depois! É de mais! Isto sempre não pode ser, você abusa!

As suas melhores horas eram as do sono, profundo, de poço, em que ao deitar mergulhava logo. Esses pedaços de vida, furtados à desgraça, em que se não pensa, sem sonhos, dum profundo aniquilamento, eram o único gozo do Gebo. E tanto mais a desgraça o abalava, tanto maiores eram os seus cuidados, mais absoluto o seu sono. Ao contrário da mulher, que quase não dormia e levava a noite inteira a cismar e a chorar, ele, logo caído na cama, logo tombava como morto. Às vezes a mulher nem descansar o deixava; queria falar, discutir, ouvi-lo:

— Dormes como um porco! Fala, escuta-me!

E o Gebo, a pingar de sono, lá se punha a dizer palavras, coisas desnorteadas, até que ela enfurecida exclamava:

— Dorme! Fica-te para aí!...

Mas tinha de acordar e a caça aos magros cinco tostões, que todos os dias precisava de juntar, começara a ser desorientada e feroz. Viam-no correr, espreitar um conhecido de outrora, segui-lo, dizer-lhe a sua aflição em palavras desconexas, e depois muito baixinho pedir esmola. Ficava horas à porta duma loja, esse velho trôpego, com o casaco no fio remendado pela filha, à espera que um conhecido passasse. Às vezes consumiam-se os dias e ele sem dinheiro para pão — porque os corações são de pedra. Rondava num desespero pelas ruas. Não encontraria alguém que lhe valesse?

Despediam-no, e ele fazia-se mais humilde, sem ódios, pedinchão e sempre a suar, Já não tinha que pôr no prego e muitas vezes se lembrava da morte.

Ao chegar a casa, sufocado, pesado, a mulher, que o esperava num transe, perguntava ao avistá-lo:

— E então? então?

— Cá está, mulher! cá está!

Oh descansar, dormir na terra bem pesada, bem funda, para sempre fugir àquela fadiga de lágrimas, esquecer as humilhações, as horas amargas passadas atrás dos que outrora servira! ficar no derradeiro sono, de que nunca mais se acorda nem para a desgraça, nem para o escárnio!...

E nem na própria casa o Gebo descansava. Precisava mentir. Eram infindáveis os ralhos e os gritos. Só Sofia, pela sua resignação, lhe dava ânimo. Se não fosse ela, seria tão bom morrer!... Os seus amigos estavam ricos e secos como as pedras. Alguns nem sequer o viam: riam-se outros dele e não lhe davam esmola. E mais fundo, mais fundo, assim se atascava na desgraça, gordo e pícaro, atarantado e pedinchão, com uma única ideia ao acordar: arranjar dinheiro para as mulheres comerem.

Já coçados e gastos, todos os dias diziam as mesmas palavras e passavam pelas mesmas aflições.

Transidos pelo frio interior, o verdadeiro frio, que só a miséria dá, encostados uns aos outros, raro se aqueciam ainda com um sonho vão. Fixavam o olhar, perdidos, absorvidos pela realidade, e a desgraça ali presente parecia rir-se. Gastavam as últimas roupas, faltavam já trapos usados e ele de cada vez mais gordo e mais mole.

Se acontecia rirem-se por futilidades, todos três juntos, aquele riso fazia mais aflição do que as próprias lágrimas.

Muitas noites não se acendia o lume e por fim todos três dormiam numa única enxerga.

A mulher já não ralhava: tombara, com o olhar desorientado e os dias gastos em monólogos desconexos.

Era o fim destas três figuras amarradas umas às outras pela desgraça — a figura que luta e espera, que espera sempre, numa discussão perpétua, que só na cova terá fim, seca de desespero e enorme; Sofia que não fala e se resigna, que não sabe queixar-se e esconde a sua dor; e o Gebo, amolgado pelos encontrões da vida, gordo, ridículo e de cabelos brancos estacados.

— Ó Gebo!

— Anh? anh?...

Viviam mais pobres que os pobres. Ele saía logo de manhã com a roupa no fio e as botas rotas. E a mulher ainda teimava:

— Homem, vê se te dão um emprego...

— Anh? Eu vejo! eu vejo!... Não te aflijas, mulher.

Um emprego! quem dá aí pão ao Gebo, amachucado e ridículo, envelhecido e trôpego, e que mal sabe escrever, de cego e tonto? Aguilhoado, todos os dias se levantava para a humilhação e para a correria atrás duns míseros cobres. Era esmola que ele pedia, a chorar — de cabelos brancos estacados.

Um dia andara, rondara, a tressuar de aflição.

Todos o repeliam. Era em certa terça aziaga desse inverno enregelado e torvo. Nem andar podia de amargura e cansaço, e via chegar a noite, horas de voltar para casa, onde a mulher o esperava ansiosa:

— Então? então?... Arranjaste?

Oh se o Senhor lhe valesse! se o Senhor que tudo vê lhe acudisse na sua miséria profunda! Nada.

Todas as portas fechadas, todas as almas fechadas a sete chaves. Então, a chorar, aquele velho ridículo e gordo estendeu a mão a um desconhecido que passava, dizendo palavras desconexas. Tinham fome em casa...

E pediu a um, a outro, encolhido, escondido, bebendo as lágrimas, para que lhas não vissem, numa aflição de rachar pedras. Na mansarda as duas esperavam esse triste e amargurado pão, e ele nem dava pelas ruas por onde caminhava com passos incertos, de bêbado. Suplicava num choro humilde, e nessa noite — terça aziaga — se o Gebo ainda tinha vaidade ficou-lhe aos farrapos na lama.

— Então? arranjaste?

— Valha-me Deus! cá está, mulher! cá está!...

Apesar dos ralhos, todos três se queriam de um profundo, de um admirável amor. A desgraça aniquilava-os juntando-os. Deixava um de comer, fingindo-se farto, para que outro tivesse mais pão; se qualquer deles adoecia, os outros nem dormir podiam, e um dia a mulher enfim tombada, inútil, sem poder erguer-se, chamou Sofia para lhe dizer baixinho:

— Olha se cuidas de teu pai. Nunca o abandones.

Foi sempre um santo.

Desde então ninguém mais lhe arrancou palavra.

Com os olhos aguados, seguia-os pela casa, até que ficou morta. Acabou gasta de lutar um dia e outro com a desgraça numa vida de desespero. Ela era o arrimo, a energia, a força que os sustentava a ambos e impelia para a vida; era ela quem disputava — em vão — braço a braço com o destino férreo, tentando ampará-los, e arrancando-lhe os últimos restos de felicidade. Em dias de fome ela a primeira a fingir-se farta. Ordenava, mandava, batalhava. Matou-a a hora em que teve de despedir-se para sempre das suas ilusões, matou-a a hora em que o Gebo já não pôde mentir.

E tudo isto cabe dentro dum caixão de pássaro!

Cabem os dias e as noites, os monólogos infindáveis, o desespero e a dor; cabe a ternura; cabem todas as construções imaginárias que nos sustentam. A vida que é tão grande não tem peso, o sonho sem limites não tem peso... Cabe ali o que maquinou e remoeu, e que é infinito ao pé desse farrapo inútil. Agora que me despeço dela para sempre, tenho de confessar que, sob esta agitação perpétua, sob este desespero inteiriço, só havia sonho e ternura. Isto durou um momento na eternidade, mas durante esse momento teve de arcar com a vida: atreveu-se a disputar com a desgraça, num debate que só terminou quando foi ao fundo. Talvez o melhor fosse a gente não teimar, talvez o melhor fosse a gente deixar-se ir logo para o fundo. Mas ela não pôde: tinha de defender a vida dos seus e a própria ilusão, e defendeu-a até cair amachucada por aquelas mãos de ferro que não perdoam nem quebram. Tombou combatendo pela vida e pelo sonho que nos acompanha até ao túmulo e para além do túmulo... Talvez o sonho dos humildes seja inútil e grotesco. Talvez seja. Mas nele entram também, como nos sonhos grandiosos, como em todos os dramas da existência, as estrelas, o céu e o inferno. Entra Deus. E isto pesa toneladas. No sonho desta figura entrava ao mesmo tempo uma ternura extraordinária. O seu desespero era ternura... E tudo isto que exigia um tablado desconforme e que liga cada ser ao vasto universo, cabe agora entre quatro tábuas de forro!

Vestida com o último vestido, pelas mãos do Gebo e da filha, ficou branca, mirrada, embebida de serenidade, mais feliz do que os vivos. O velho caíra exausto, a chorar, a um canto, e no casebre toda a noite se ouviu aquele ruído monótono, triste e inútil. Chorava e cismava: — Amanhã lá tenho de ir à procura de pão... — Sempre a mesma vida, sem tréguas, agora sós os dois e a desgraça. Quando a mulher era viva, apesar de transidos, ainda cuidavam: Para o ano, talvez para o ano a má sorte se canse de nos perseguir... E assim se gastara a última energia e os trapos que, de usados, nem sequer aqueciam. Toda a esperança murchara. O velho ouvia risadas na noite profunda e bocas a clamarem:

— Ó Gebo! ó Gebo!...

— Anh! aí vou! aí vou!

Capítulo XI
Luísa e o morto

O ladrão escondia-se. Perseguiam-no, fugira, andara, e nessa noite, com um pedaço de pão metido entre o seio e a camisa rota, fora dar ao cais. O céu estava negro e o rio negro corria como lava. A água à noite assusta; fala, atrai, e a sua frialdade tem qualquer coisa de cova. O rumor das águas lembra um ruído de vozes a concertar baixinho coisas pressagas.

Estava uma noite de silêncio húmido e abafado.

Brilhava uma luzinha ao largo e ouvia-se a ressaca subir nas pedras, entrar nas cavidades puídas do cais. E era no ermo o único ruído, aquela respiração estrangulada, apressada, um marulhar humano e trágico na noite funda, silenciosa e opaca.

O Morto aconchegou ao seio o pedaço de pão — o seu jantar — e teve um ah! de alívio. Ali ninguém o procuraria, era como se estivesse sepultado no fundo do rio. Havia quase dois dias que não comia e ia enfim dar a primeira dentada no pedaço de pão. Tinha os joelhos doridos e sentia uma lassidão enorme. Ao sentar-se topou num corpo caído, abandonado. Num sobressalto, de pé, com o pão, a que ia dar uma dentada, na mão, perguntou:

— Quem está aí?

Ninguém: a noite negra e o ruído da ressaca minando as pedras.

— Ouh!

As suas mãos ao tatear deram com uma rapariguinha inerte. A saia estava encharcada e frios os pés.

— Estará morta.

E sossegado tornou a sentar-se para comer o pão.

Mas sentiu-a mexer-se.

— Outra desgraçada... — cismou. — Quem está aí?

E, saindo da treva, uma voz de criança começou:

— Sou eu.

— Tu quem és?

— Não sou ninguém.

— Que estás aqui a fazer?

— Não estou a fazer nada.

— Tu que queres, então?

— Vim deitar-me ao rio.

— Ah!...

— Mas tive medo. A água do rio sempre é mais fria do que a morte.

A treva espessa em torno e o mesmo ruído da ressaca, a pregar. As nuvens baixas envolviam-nos num fluido negro, ambos tragados pelo deserto da noite. Não se viam e aquelas duas vozes, uma infantil e baixinha, a outra rouca, eram como o diálogo de duas forças ignotas, que o acaso rola no mesmo turbilhão do infinito.

Perguntou-lhe o Morto:

— Como te chamas?

— Chamo-me Luísa.

— Quem te fez mal?

— Ninguém. Estou grávida.

— Ah!...

— Estou grávida. Eu não sabia nada. Estou grávida, acabou-se. Porque é que não ensinam à gente que todos nos querem fazer mal? Uma pessoa devia aprender.

— O quê?

— A ser desgraçada. Há dois dias que não como.

Tenho andado por aí. Botaram-me fora, empurraram-me e eu ando por aí a chorar.

— Vai pra a tua casa.

— Eu sou do Asilo, não tenho ninguém, nem mãe, nem nada.

— Enganaram-te?

— A mim não, ninguém me enganou. Eu não sabia nada. Quando vim do asilo não sabia nada. Um dia apareci grávida e puseram-me fora. Ninguém me quer assim. Quando a gente está grávida que há de fazer? A gente não tem culpa...

— Não fizesses o filho.

— Eu era uma inocente.

— Ah! — E o ladrão riu-se.

— Não sabia nada, juro-lhe pela minha salvação.

— E então?

— Deitaram-me fora do asilo e fui servir. O patrão foi quem me logrou.

É sempre o mesmo caso banal e trágico. Se o homem encontra uma pobre criatura desprotegida e ao desamparo, ilude-a e explora-a. Saída do asilo com uma trouxa debaixo do braço e o discurso do senhor provedor, foi servir. Logo que o patrão viu aquela rapariguinha ao abandono na terra, pôs-se a falar-lhe baixo, às escondidas.

— Era como se me pisassem o coração...

Ela ouviu e depois com um sorriso triste, em que mostrava os dentes agudos de esfaimada, ficava muitas horas cismática e a falar sozinha. Abandonava-lhe o pobre corpo macerado, cheirando a enfermaria, já vindo à terra com este destino amargo — ser explorada. Ele deixou-a logo e ela continuou a servi-los, com o mesmo sorriso, mais descorada e triste. Um dia acordou grávida e patroa pô-la na rua. Remexeu-lhe a trouxa e gritou:

— O que tu merecias era ir para a polícia.

Com um filho na barriga e a trouxa debaixo do braço pôs-se a andar pelas portas, despedida das casas logo que lhe viam o ventre, até que foi dar o rio pregava e o ladrão ria.

Calou-se. Só se ouvia o chapinhar da maré. Só o rio pregava e o ladrão ria.

Uma luzinha, que brilhava ao largo deixando na água um fio de oiro trémulo, de todo se sumira. Então o Morto, no silêncio e no negrume, começou:

— Tu que imaginas que é isto?

— Isto quê, senhor?

— A vida. Todos querem mas é enganar. Os ricos fazem mal aos pobres, os pobres roubam os ricos. Todos querem fazer chorar os mais.

— Todos?

— Todos. Eu mesmo posso-te agora matar, posso-te fazer o mal que quiser. Não grites, que é pior. Ninguém te acode.

— Eu não grito.

Deitou-lhe as mãos enormes e frias puxou-a para si para a olhar no escuro:

— A tua mãe botou-te fora, para não te criar, o teu patrão enganou-te. Tu que imaginas? E que podias fazer senão deixá-lo enganar-te? Que hás de fazer? Hão de enganar-te sempre e só te não desamparará...

— Quem? — perguntou ansiosa.

— A fome. Hás de andar por aí até caíres de velha, aos pontapés e às voltas com a desgraça.

Agora vais ser minha... A desgraça é que pode tudo, ninguém no mundo tem mais força. Se tiveres fome, hão de — se rir de ti e dar-te terra a comer.

— Ó senhor! senhor! Mas então para que me criaram no asilo? Era melhor terem-me deixado morrer. Eu não faço mal a ninguém. Que hei de fazer? Tenho esta camisa que trago no corpo. Uma saia empenhei-a. Há dois dias que não como.

— Mata-te. Para que vieste tu ao rio?

— Para me afogar... Mas tenho um medo à água!...

Quando meti os pés no rio tão negro, fugi...

Apertou-a nas grandes mãos, mas ela nem sequer gritou. Era uma coisa já sem forças, abandonada, que chegara a compreender que seria sempre a presa do mais forte. O ladrão ria. E ela só gemeu:

— Ó minha mãezinha!...

E tombou para o lado.

O Morto palpou-a. Estava encharcada, todo o pobre corpo, ainda por criar, enregelado e transido.

— Tu que tens?

— Nada. Fome.

— Toma lá.

E o ladrão deu-lhe todo o pão que trazia.

Capítulo XII
Filosofia do Gabiru

Em todo o caso, se a imoralidade existe, deve ser bem diferente de tudo o que se tem sonhado.

Ser despedaçado, oprimido, calcado, torna quase sempre o homem grande, porque abala e acorda vozes adormecidas.

Compreendo o materialista sincero, o idealista sincero. Num predomina a nuvem, no outro a terra. Tudo o que é verdadeiro, arraigado e fundo, é belo — até o crime.

Não importa saber donde nasceu a ideia da imortalidade, o que importa é saber se a imortalidade existe. Todos a sentem, até os mais materialistas, todos sabem que ela brilha no fundo do nosso ser. Podem-na abalar, abafar, com teorias, palavras, explicações mesquinhas, o que não podem é arrancá-la. É como certas árvores que, deitadas abaixo, deixam sempre profundas e inabaláveis raízes no solo. Para as extinguir seria necessário tornar estéril a terra.

Cada homem trá-la consigo como uma certeza ou como uma aspiração... Ela remexe sob todas as cinzas.

— Mas que imortalidade?

Tomo tudo a sério, até as coisas sem importância — outra razão para ser desgraçado.

E quando é que eu cumpro o meu destino? — dirás.

Interroga-te.

Se as árvores não fossem necessárias, existiriam árvores? Se os criminosos não fossem necessários, existiriam porventura criminosos?

A educação que nos dão, o melhor que há a fazer é esquecê-la. E esquece-se porque ela nada tem com a vida, é uma coisa à parte. A que adquirimos à custa de nervos, de sangue, de suor, a que se aprende na peleja, essa acompanha-nos até ao túmulo. É a verdadeira.

O homem procura sempre uma filosofia onde caiba o seu temperamento, os seus erros — e até os seus crimes.

Se não existe, inventa-a.

Acho que, ao contrário do que se diz, não sou amigo de ninguém senão nos primeiros tempos. A princípio os ângulos não aparecem ou disfarçam-se.

Depois começamos a ser duros.

Creio que só há amigos até aos vinte anos, quando ainda se não pensa na vida. Depois endurece-se. Raros são os homens que através da vida a sério e dos interesses conservam ainda amigos.

Para ficarmos amigos, tenho ou de me submeter ou de te submeter.

Não, a morte não destrói a essência da vida, mas, desorganizando uma forma, destrói a consciência dessa forma, que é formada de milhares de consciências...

A ação do que se chama espírito sobre a minha matéria produz o meu eu, com os seus erros, sonhos, desesperos, ódios. A mesma força, tira harmonias diferentes duma arpa ou dum órgão. O que resta, pois?

A essência da vida?

A predominância de certas moléculas produz o sonhador; a predominância de outras o herói, etc... Eis a futura química.

Não se trata de ser feliz ou desgraçado, mas de se cumprir o destino para que se nasceu.

Que ideia tão falsa a de se supor que a vida tem um fim — a felicidade ou a desgraça! Não é isto subordinar o universo ao homem?

Se a vida tem um fim — é viver. Viver, deixar que cumpramos o fim para que fomos nascidos. Isto é lógico, inevitável, maior, decerto, do que o que supomos, mais belo, mas cedo ainda para se entrever.

O homem é uma fonte onde a vida corre límpida ou turva, num fio que a emoção torna de oiro num jato negro de cólera. Eu ouço assim correr a minha existência...

Um dia a fonte seca-se.

A terra há de sempre criar os seus tipos, quer os homens queiram quer não. O homem não é senão a essência do universo e nasce para que tudo tenha boca.

Podemos tentar abafar isto, por diques, retardar a torrente, mas um dia o largo rio da vida e do destino irrompe.

Não, não é justo que a gente morra de súbito sem protesto, sem palavras, sem gritos, com os seus erros, as suas ambições, os seus sonhos... Abre-se de repente uma cova... Não se pensa mais, não se vê, não se ouve... E o que custa não é deixar pessoas queridas, nem hábitos — é não viver. Morrer quando a vida continua da mesma forma harmónica e impassível — eis o horror.

Nenhum outro homem no universo existe realmente para o homem; nenhuma outra vida senão a sua vida.

Ao chegar dos trinta anos abandonam-se os amigos. Se alguns restam é por hábito ou por interesse: é por cálculo. Se queres continuar a amar os outros, afasta-te, torna-te solitário. Ou deixas de ser sincero e passas a morar com a mentira. A peleja começou: é preciso arredar, vencer — e cada um nessa idade é o que é. Já se não amolda: é um ferro desembainhado, saído da forja; tem já os seus hábitos, vaidade, mentiras. Tudo o que estava apenas esboçado endureceu; é de pedra.

De forma que se quiseres viver com os outros tens de representar.

Os que têm uma forte individualidade arredam-se, porque nunca podem agradar. O triunfo pertence não aos mais fortes, nem aos mais inteligentes, mas aos que, sem pessoalidade, podem ser todo o mundo...

Ser parecido lisonjeia: daí, tens de afivelar uma máscara igual à do homem que precisas conquistar.

Sim, a vida é uma tragédia esplêndida, com todos os seus crimes, sonhos, ódios. Falam em nos as montanhas, as árvores, as nuvens, e fala até, num murmúrio, o que é ainda desconhecido.

Que é preciso para que cada um se encontre? Que é preciso para que as árvores abaladas se carreguem de flor? A Primavera — a dor.

Tu és a mãe, terra; tu a fecundaste, dor, e até nós veio como o murmúrio apagado dos teus gritos.

Amo-te nos bichos, no sol, na luz, nas pedras; na terra onde mergulho as mãos até as enegrecer, na água que mas banha; no ar que respiro; no sonho; na morte; na desgraça; no que é humilde ou grande, não importa.

Capítulo XIII
Essa rapariguinha

Quedo-me a cismar sozinho neste velho casarão...

De noite ouço vozes, logo sufocadas, que me querem falar e não podem. Só os meus crimes de outrora (há tanto esquecidos) se põem a pregar dentro de mim.

Arqueja o lume no escuro e sinto em redor toda a treva povoada...

Foi há vinte anos e no entanto hoje, como em certas horas pressagas, alguma coisa remexe e acorda dentro em mim. Oh não! bem sei, por de mais conheço a forma por que as ideias se ligam, até as mais contraditórias, e como um nada recorda um velho crime abafado... Mas não é isto: é do fundo do meu ser que esta imagem irrompe, desligada, sem nexo, como um fantasma. Às vezes estou só e esquecido e um estalido atrás de mim lembra-ma, outras acordo de repente, altas horas, já a pensar nessa pobre criatura explorada. O rumor da vida, outros crimes amontoados, podem fazer-me esquecer esta imagem, mas um dia vem em que grito:

— Abandonada! abandonada!...

E no entanto o facto em si é simples e banal, vulgar como essa rapariguinha das ruas, molhada até aos ossos, a quem nem mesmo soube o nome, porque nem sequer lho perguntei.

Convenci-a a que me seguisse por vaidade, para ser como os outros, ao encontrá-la uma tarde, sem pão, expulsa de casa, vagueando na tristeza das ruas. Teria quinze anos? Teria. Disse-me a medo que sim. E eu, levando-a para a casa de passe, sentia, não orgulho, nem prazer, mas opressão e vergonha. Perguntava já a mim mesmo: como hei de ver-me livre dela?

Nada mais ignorante, mais puro, mais simples...

Foi um crime. Deixei-a rapidamente, dando dinheiro à mulher gorda e vesga, que sorria, e fugi como quem foge ao remorso.

Mais nada. Porque é então — já lá vão muitos anos — que a certas horas de silêncio me lembra essa pobre criatura e as suas palavras ingénuas, o sorriso da mulher vesga e o pobre corpo magrinho e encharcado da chuva, todo dorido da vida?

Vejo-a aqui, aqui no escuro, descalça, molhada até aos ossos e a sorrir-se para mim, com um sorriso todo lágrimas, com um sorriso tão triste que me dói o coração.

Arqueja o lume no escuro todo povoado de vozes, que vão pregar, mas que logo se calam sufocadas. A ventania passa lá fora e na escada soam os passos do gato-pingado; as mulheres gargalham e eu fico sozinho, a cismar, neste velho casarão, com os olhos presos no lume que esmorece...

Por fim tudo se confunde na minha alma, os vivos e os mortos, o sonho e a realidade. Há dias em que não distingo as feições dos que habitam comigo no prédio, das feições dos que estão enterrados na cova. Tanto vale o fantasma que me persegue como este homem que pára à minha porta gemendo.

E ei-lo outra vez no patamar a tossir, com o peito escalavrado e roto!

Na verdade não conheço ninguém tão nulo, banal como a própria banalidade. A sorrir, a amar, e até com o coração despedaçado, esse homem fazia sempre rir. Os próprios inimigos tinham por ele piedade ou desprezo.

Sim, piedade ou desprezo, porque era incapaz de ódios.

Nunca pudera aprender a vingar-se e sabiam-no. A mim mesmo me fez algum bem, que depois lhe retribui em esmolas, ao encontrá-lo estatelado na rua: Nunca lhe achei interesse: a sua vida é a vida de todas as criaturas que se afundam por falta de tino prático para a luta: enlamear, mentir, triunfar enfim. A vida (oh todas as sólidas filosofias o ensinam) é de quem possui a força e aptidão... Mas hoje estou num dia enervado e sinto-me sozinho neste velho casarão. Parece que a noite tem vozes e que os meus crimes de outrora (há tanto esquecidos!...) encontram enfim palavras e se põem a falar dentro em mim.

É talvez para fugir a esta obsessão que me deito a cismar na vida deste ser banal como a própria banalidade.

Nem sei como conte, com que palavras faça a narração duma existência que é como um trapo que se deita fora todo molhado de lágrimas.

Sim, um doido. E nunca foi feliz. Veio um dia a catástrofe e incendiou-lhe a casa: mais tarde enganaram-no, mentiram-lhe. E não faltou a doença a escalavrá-lo brocando-lhe a cara e a tísica a romper-lhe o peito com tosse, nem a miséria a deprimi-lo. É por isso que ele, ao sacar das casas o caixão dos mortos como quem o arranca do peito dos que ficam, decerto ri por dentro, há de rir consolado.

Apedrejam-no os garotos ao vê-lo passar para os enterros, fogem dele os vizinhos e só uma mulher, tão maltratada pelo destino como ele, fala ao gato-pingado.

Foi sempre assim: raquítica, triste e feia. A vida para ela tem sido sustentar primeiro a mulher que a tirou do asilo, depois o homem com quem casou, e que logo a deixou sozinha. Só com o gato-pingado conversa às vezes. Diz sempre as mesmas coisas e com que mesquinhas palavras! Mal sabe exprimir-se. Falam os dois como podem comunicar entre si as pedras, os seres que o acaso rola juntos no mesmo vagalhão da vida. Nem se queixam — e de que se hão de queixar? Deus os sustenta na sua mão de pai.

— A gente é pobre — diz, ele.

— A gente é pobre — diz ela. — E às vezes passa fome.

— Passa.

— Quando a minha mãezinha era viva, eu rapava fome. Era preciso dar-lhe o sustento e eu mal o ganhava para mim. Ate que acabou de penar os seus trabalhos.

Tudo se acaba um dia.

— Pior do que isso é não ter ninguém. É pior do que a fome.

— É o pior de tudo.

— Que se há de fazer?

— Sabe vossemecê? olhe que eu às vezes ponho-me a cismar porque é que a gente sofre...

E o vento ulula. No coração do inverno o enxurro leva as lágrimas que ensoparam a terra e a lufada arrasta os gemidos para um destino ignorado. Rola as lágrimas dos pobres, nalguma nuvem perdida, e gemidos, ais, palavras leva-as o vento consigo. Noite negra! noite negra! Arqueja o lume e o prédio sob a ventania arqueja.

Eis-me a cismar absorvido nas brasas, fascinado pelo seu escarlate, ou com os olhos postos nesse outro lume, o Hospital, que brilha na escuridão como um brasido de gritos.

A pedra de que o construíram di-la-eis transida.

Foram-no acrescentando: ao granito ligaram o granito, conforme a miséria cresceu. Arrancaram-no ao coração da terra. A ossada dos montes, abraçada pelas raízes, a fraga escondida que com a água viveu e em si a guardou, sentindo-a bulir no seu seio, minar para a luz, a pedra irmã da terra, sepultada na terra, veio ter este destino — abrigo de míseros.

Ao pé da pedra no saguão a árvore cresce, cada vez maior. As suas raízes vão sob a terra até ao Hospital e os seus braços doridos quase cobrem o prédio. Dum lado o Hospital, do outro a Árvore. Só eles prosperam.

Deita a árvore pernadas e a cada inverno o granito aumenta, qual outra árvore de pedra. Num corre seiva, no outro gritos. Também o hospital estende raízes por toda a cidade.

À custa de que esforços e de que dor chegou a Árvore a crescer? Nenhum destes desgraçados sabe o seu nome, ninguém sabe dizer para o que serve. A maior parte da gente na cidade de pedra nunca viu uma árvore...

E ela teimou. Subiu. Deitou ramos esbranquiçados para o sol e para a luz, como uma árvore espetro — uma árvore dorida, uma imensa árvore dorida e estranha. Suas raízes vão sugar no hospital. Com os anos enlaçaram o granito, pouco e pouco desconjuntaram-no, abriram fendas para mergulharem mais fundo na miséria humana.

E para lá? o que há para lá? Ao findar dos dias sinto um ar vivo que é a respiração dos montes adormecidos, batendo como ondas nos muros compactos do hospital, e ruídos, claridades, mistura de oiro e verde, gorgolejos de minas, chuva de sol e de água tombando.

Arfa a terra, incham os montes e vogam no ar aspirações de árvores, murmúrios de fontes, o hálito das plantas ignoradas. Oh há noites encharcadas de luar, em que se ouvem as lágrimas das noras paradas, caindo uma a uma na terra sequiosa, e se pressentem diálogos de sonho entre os grandes pinheiros bravios... E a Árvore fica indiferente.

Mas os desgraçados gritam, os pobres gemem — e a Árvore entontece, abalada até às raízes mais fundas...

Esperai! esperai!... A ventania redobra. Depois um silêncio prostrado, um silêncio pior do que a lufada, em que eu ouço o esforço que o mundo que povoa a escuridão faz para gritar. A treva arqueja e a última brasa reluz ainda no lar, cujo escarlate arqueja, arqueja e vai esmorecendo...

Grito! É sempre a mesma rapariguinha que ressurge, magra, pálida e triste, com um pobre vestido encharcado de chuva ou ensopado de lágrimas. Sorri para mim descalça, estendendo-me os braços. Ei-la! ei-la!...

Só uma brasa ainda vive no lume, misturando na escuridão uma poeira escarlate. E vai apagar-se!

Extingue-se!...

Toda a vida é uma construção de gritos, a cada passo para a frente há sempre uma criatura espezinhada...

Que queres tu?

E uma coisa fútil a vida? Então porque não conseguimos apagar o vestígio dos nossos passos? porque não conseguimos esquecer? Esquecer! esquecer! Não, nunca mais se esquece a dor que se causa no mundo!

Passam-se os dias e os anos e a imagem ressurge diante dos meus olhos. Não me acusa. Eu é que me acuso. Todos os passos que damos no mundo tão irremediáveis, toda a dor ligada à dor, todos os mortos e os vivos fazem parte da mesma legião que me estende os braços. Tu que queres?...

Não é ódio que ela tem por mim, porque o seu sorriso, que eu sinto molhado de lágrimas, é triste mas resignado. No entanto o remorso acorda, o remorso põe-se a rugir... Vejo a mulher gorda e vesga dar-lhe dinheiro; vejo-a depois partir através das ruas, encharcada até aos ossos, sem perceber porque foi vilipendiada, enganada e expulsa... Vai gritar? De que servem os gritos na terra, não me dirão?

Para quem há de ela apelar no mundo? E não entende. Descalça caminha pelas ruas desertas à chuva; pela vida aspérrima ao abandono. Vem depois outro e engana-a, mente-lhe. Para que servem os gritos na terra?

Tem de sofrer e de se resignar à brutalidade, ao escárnio, aos risos; tem de se afazer a ser explorada, à mentira, à infâmia... E assim caminha, ensopada de lágrimas, afundada na desgraça pelos que passam e riem; assim vai pela vida fora até onde?... Até onde?

Oh aquela brasa que ainda reluz como uma poeirinha de oiro, aquela brasa que vai morrer no lar quase de todo apagado!... A lufada doida passa lá fora aos gritos! Quanta gente grita neste vale de lágrimas!

Imensa legião de pobres formando um só corpo em carne viva, desordenado rio de dor que une a terra a Deus! A esta mesma hora quantos berram espezinhados, sem mão que os ampare? De que servem os gritos, não me dirão?...

Aquela réstia de lume é como o último fio de uma alma que vai findar!...

E ela aí volta, aí torna! Pobre corpo murcho, nascido para o sofrimento, já dorido da vida, vestido duma sainha e dum sorriso resignado de quem já pressente o que a espera — quantos gritos! quantas lágrimas pela existência fora!...

Cerrou-se de todo a escuridão. Sufoco!...

Capítulo XIV
O escárnio

No ermo da noite o Gabiru vai tecendo a sua teia:

«A matéria também sonha. Nessa mistura de homens e calhaus, torrente que leva consigo gritos e forças embravecidas, turbilhão a rasto pelo infinito fora, não é indiferente ir ser pedra ou nuvem, nascer em macieira de quintal escondido e humilde ou na água fulgindo duma fraga. Não é o acaso que reúne ou afasta as moléculas, para as fundir noutras formas. Há corpos que a química não consegue ligar, porque os separa o ódio, e outros que se atraem com sofreguidão.

Depois da morte a matéria entra num mar. Rios acarretam as moléculas, até que se encontrem as que se devem juntar. O meu coração unido ao teu há de florir num espinheiro. Será num sítio pobre, mas alguém que passe nesse Abril, sentir-se-á enternecido para sempre.

O meu cérebro procurará o teu cérebro para vogarmos juntos na mansidão dum rio. Ora em terra, ora em pedra buscar-te-ei inconscientemente até dar contigo e te fruir nesse oceano bravio. Se tu fores fonte, irei topar-te e juntos apagaremos a sede a muita raiz esquecida.

Criaturas simples vão ser árvores que de anainhas a gente se sente comovida ao vê-las; os sonhadores, desfeitos em nuvens, andarão nos poentes do mar salgado, e as penedias, que o sol abrasa, as penedias eternas, serão construídas do coração dos maus.

Ei-lo o prodígio, o extraordinário milagre, esta vida que o Pita me mostrou, árvores, nuvens, mar, este monstruoso referver de vida, igual nos montes e nos ígneos mundos. E eu pertenço a este pélago como tu, passo os meus dias a contemplá-lo!

Fico horas a aparar nas mãos o jorro do sol, olhando-o correr...

Por força existe uma razão superior, senão o homem seria Deus, a consciência do universo, o que se não compreende: um deus reles, com misérias e gritos, sempre a escalar o infinito e sempre despedaçado pelos tombos.

Sê sempre bom, porque a bondade eterniza o amor.

Os crimes da matéria pune-os a matéria, os crimes do espírito pune-os o espírito.

Já ouviste que as árvores, o mar e as pedras tivessem dúvidas ou tremessem de pavor?

Ver o sol, o universo, olhar, já é um prodigioso milagre. Mas tocar, compreender calhaus, almas, ter raízes em todas as estrelas, no céu e no oceano — é o portentoso sonho.

O homem arranca de si próprio universos de beleza.

O homem tem uma centelha de prodigiosa alma que erra no grande mar de sonho que vai espraiar-se de estrela a estrela e tudo enche, doirado e enorme, e que em si consubstancia o génio, a beleza, o amor. Logo que a matéria se dispersa, a imorredoura faísca volta ao atlântico donde tinha saído.

Criamos cada um de nós um universo de angústia ou de beleza, ressequido ou de fogo. São felizes os bons portanto. Há no entanto criaturas que vivem sem suspeitarem que o universo existe.» Às vezes nos mais simples factos encontra-se mistério, como num punhado de desprezível terra há uma força escondida. Parece inerte. Esperai, porém, que Março a toque!... Assim esse pobre desajeitado, sempre tímido e vestido de negro, tinha uma existência feliz.

Na trapeira passava as horas a cismar nessa rapariga quase tísica, com um ar de máscara que vai gritar de aflição. A Mouca foi amada como as princesas lendárias, e esses amores entre um filósofo esfaimado e uma mulher da vida tinham não sei que enternecido interesse. Sobre os calhamaços do Gabiru alguém encontrou por vezes flores ressequidas e nessa primavera — caso único — o vento trouxe por cima dos telhados duas borboletas que vieram noivar no saguão.

Ele era feliz. Que importa ter-se fome, se se ama?

O amor e a fé não transformam o mundo até às suas mais profundas raízes? Quem diz que se não podem construir com aquelas nuvens esparsas marmóreos palácios ou estrofes de luar?

As suas teorias, as suas ideias ia-as tecendo e olhando a Árvore. Pelo tronco corriam estremeções.

Debruçado na trapeira, fascinado olhava os galhos esbranquiçados, ainda nua, mas — como direi?-já vestida de emoção.

— Aquela Árvore... — murmurava ele cismático. Em baixo corria sempre a levada, lágrimas, gritos, gargalhadas, lama espezinhada que fala, lodo misturado de sonho, logo nascido, logo atirado à arena, gebos, prostitutas, monstros em cujo corpo de sapo habita a alma dum deus. Porquê? donde? De que ruínas se constroem estes seres que o destino marcou com dedadas trágicas?

São feitos de pedaços de estátuas e loucura. Falam em gíria. Se riem são o Riso e é como se dentro deles andasse um doloroso palhaço aos saltos. Têm olhares de desespero e de ódios. Eis um rio de gritos que brotou para sofrer. É a noite que anda a arquitetar de neblinas os seres destinados à arena? Este esgoto que passa, todo revolvido, pela natureza indiferente, é porventura necessário e fecundante?...

Todos os dias o Gabiru lá vai sentar-se olhando a Mouca entre os ladrões e os soldados, que a noite surgem para se rirem das lágrimas e dos gritos. Entre a turba sinistra vem sempre o velho, calado e feroz, que só ri com uma boca disforme, e o Morto, que fala com desprezo do sofrimento, das mulheres, da morte. O Gabiru, encolhido e triste, põe-se ao seu lado a olhar para a Mouca e vai tecendo o seu sonho. Toda a noite é uma mistura de gritos, de lágrimas e risos. Espancam as mulheres e quando elas choram, caídas, tornadas em escárnio, ínfimas como a terra, todos eles riem, com um anh! de satisfação por as fazerem sofrer.

Mas um deles nessa noite repara no Gabiru, perdido a um canto sem ver nem ouvir, ridículo, esguio, alheado. Aponta-o e logo a turba emudece.

O Morto, pondo-lhe a larga mão no peito:

— Ó tu!

— Anh?

— Tu que andas aqui a fazer, ó Gabiru?

Logo o Velho escancara as faces e todos os outros de repelão se erguem.

— Esperem... Tu não ouves?

— Anh? — diz ele, acordando estonteado. — Anh?

Então o Morto, que aperta sempre uma contra a outra as mãos geladas, como se tivesse vontade de maltratar, clama:

— Acho que é poeta! Dizem que é poeta!...

E em torno pega-se o riso feroz como um mar que sobe. As mulheres, que foram sempre maltratadas, chegam-se rotas, tísicas, rasas como o chão:

— É o poeta!

Há olhares vesgos, de ódio, lume que gela e arde.

A maldade ressurge. Vão-se rir, vão espezinhar. Logo o coro de gargalhadas e de gritos estruge.

— Olhai pra ele... Sabeis como lhe chamam?

— Chamam-lhe o Gabiru.

— É o enguiço — diz a Mouca.

— Olha lá — avança outro — onde metes tu essas pernas?

— Anh? — pergunta o Gabiru sem entender ainda, tonto de sonho.

E fita os ladrões e as mulheres que formam roda.

Esguio e transido de frio, dentro do casaco de alpaca, pela primeira vez descobre, à luz do candeeiro fumarento, a triste realidade, as mulheres da vida, os seres de descalabro, as cara dos ladrões. Há fisionomias de pavor, e em semicírculo, chegam-se para ele, de bocas escancaradas, só bocas. Ninguém se ri da dor física como os pobres, que só admiram a força.

— Tu que andas aqui a fazer, ó Gabiru?

Ele espantado acorda:

— Anh?

Olha-os tonto, magro, esfaimado. Através da névoa do sonho vê a realidade, e entre o circulo dos ladrões e das mulheres acha-se transido, tímido e torto. Em redor os outros sentem que vão fazer mal. Vão-se rir do que é pobre e desajeitado; vão-se rir do que não compreendem — do sonho.

— Acho que é poeta!...

E os ladrões ululam. O riso é ódio, o riso ignaro é ódio da matéria contra o espírito. Tem este nome — o escárnio. Ajuntam-se os ladrões e as mulheres para gargalharem daquele ser encolhido e torto.

Tem passado fome, tem vivido só com pão e cisma, preso a nuvens e de súbito dá de cara com o escárnio.

Há quem se ria da dor, dos gritos, da tragédia. O mal faz rir? Faz. A dor faz rir? Faz. E a desgraça? Também.

Os ladrões e as mulheres têm vontade de espezinhar porque odeiam e não compreendem o sonho.

Arrastem para um tablado as piores ruínas e as mais amargas catástrofes, que a multidão gargalha. Ponham a fome a ulular, que a matéria ri. Ri de tudo o que é triste, pobre e torto — e do que é belo como os astros.

Ressuma raiva o escárnio. Neste riso há sempre gritos. Toca a gargalhar da desgraça e da dor; transformam em força toda a tragédia humana.

— Diz que estás apaixonado?

O Gabiru cala-se.

— Tu não falas?... Ah tu não falas, enguiço?... É desta que tu gostas?

— É de mim? — pergunta a tísica e tosse, rindo-se.

— É de mim? — Está ao pé da cova e espezinha, ri com ódio, pelo que sofreu na vida.

Cessam num momento os risos. O que sentem todos é vontade de o calcar, de o tornar raso como eles...

— É por esta? Não? Então tu imaginas que há alguém que goste de ti, meu desengonçado? Tu!... Vocês vêem-no? Nem sei que parece! Aí vai o poeta!...

Dá-lhe um encontrão, atira-o e, entre risos e chufas, vai de mão em mão como um trapo. Todos têm vontade de o amachucar, de o tornarem mais reles, mais triste, mais pobre e transido, por não lhe poderem tirar o pão da sua vida — o sonho.

— Aí vai o poeta!...

Até que o largam. De pé no meio da sala, com o casaco roto, amolgado, exclama, não compreendendo:

— Mas eu que fiz? eu que fiz?... — Vai rir? vai chorar?...

As gargalhadas redobram ao verem-no espantado e pícaro. As bocas más clamam, cheias de gritos. O seu olhar aflito procura a Mouca e vê-a rir-se também. Nos olhos reflete-se-lhe o abismo que descobre, a secura dos outros, o sonho calcado e por terra, lágrimas e enternecido espanto.

— Foste tu! foste tu! Tu riste-te de mim!... — diz, apontado a Mouca.

Os ladrões gargalham e só ela se cala, a Mouca que tem rido sempre de tudo, da vida, da morte e até da própria desgraça.

— Ó Mouca! ó Mouca! olha o poeta! — gritam todos à uma.

— Que é! Deixem-me!...

E cisma.

Altas horas da noite. Saio, erro... A pensar em quê?

Em coisas desligadas, sem nexo: na ambição, no ódio, no exaspero. As ruas seguem monótonas, negras, enlameadas; dum lado e de outro as casas parecem construídas de tinta, e de lama o céu, que se desfaz e goteja. Que mundo este!... Na minha frente, reparo, caminha um velho... Não o distingo bem: é a sua sombra que eu vejo, cómica e desengonçada e, ao passar pelo lampião ia jurar que lhe notei cabelos brancos. Aquela sombra agita-se. Mexe os braços, com o chapéu na mão, fala sozinho, discute... As vezes tropeça, ergue-se e lá parte a pregar por entre a casaria e o ruído, debaixo da chuva miúda, lama negra que goteja do céu.

Agora as ruelas apertam-se e, já reparei, ele pára, volta para trás, há meia hora que gira no mesmo sítio, absorto. A chuva enlameia-lhe os cabelos e os seus braços gesticulam num redemoinho.

Das alfurjas vai saindo um ou outro noctívago, que o olha e passa indiferente, murmurando os seus exasperos ou as suas aflições.

A cidade di-la-íeis farta de tédio, afundando-se em lama. As nuvens baixas e disformes esfarrapam-se, colam-se aos prédios. Os casarões alongam-se pesados e enormes, e onde a onde irrompe um golfão de luz. A sombra caminha, toma por ruelas funéreas. Vai sozinha com o seu sonho ou a sua desgraça. Três horas numa torre. Há um silêncio cavo. Chove sempre a mesma chuva tenaz, com um céu nublado e aflitivo. A cidade morta, sob o aguaceiro, espapaça-se na lama. Debaixo de cada um destes tetos escondem-se as mesmas misérias e os mesmos sonhos. Esta pedra abriga ódios, crimes, escárnio. A sombra perde-se no escuro, torna, pára indecisa...

Que me importa o que os outros sofrem? Uma desgraça? O mundo está cheio de desgraçados. Um sonhador que se afunda? O mundo está farto de sonho.

Este mesmo céu pesado, esfarrapado e trágico, tem abrigado sempre gritos e catástrofes. Que me importa o que ele sofre? Cada um por si, cada um com as suas lágrimas e os seus ódios... O homem por vezes tropeça, cai; depois lá se arrasta trôpego. Alvorece e, àquela primeira luz, a cidade parece desenterrada. A casaria ressurge, emerge da treva, leprosa, cambada, gasta pelo ódio, pelas ambições, pelos rancores...

Ei-lo que se senta na terra, arrasado, enlameado, exausto... Ao romper da manhã começa de novo a chover e ele chora.

Tanta lágrima! Um dia a desgraça, no outro a desgraça... Aquela sombra é a minha! aquele homem sou eu!...

Capítulo XV
Fala

Falo. De súbito a minha vida surgiu-me como um desses dias de inverno pardos e monótonos, em que até o resquício de sonho que acaso coube em sorte às pedras se concentra adormecido. Secou-me na boca o riso que ia rir, e acudiram-me ideias em que nunca tinha refletido... Alguém abala uma árvore até às suas últimas raízes. Arranca-a. O grito que a terra revolvida dá foi o meu grito.

Dêem-me a vida que devem viver os seres e as coisas a quem ninguém ensina a vida; que bebem a largos sorvos a existência: em quem a vida corre desordenada e esplêndida. Quero enfim isto: ser; não fingir, mas ser; não viver da tua vida, mas da minha própria vida.

O momento em que tu deparas, a sós com a tua alma, que até aí não tinham encontrado, toca a loucura — mas depois ouves falar dentro de ti tudo que estava para sempre adormecido...

O que é isto — o escárnio? Donde vem isto ao mundo? Riem porventura as árvores? E os montes e os rios também riem? O escárnio torce o coração. Riram — se de mim! riram-se de mim!

Surraram-me, secaram-me. O que eu sei é aprendido, vão, construído de palavras que não são minhas.

Nada conheço da vida.

O homem só é feliz quando é ele. Os outros é que o empurram para a desgraça. O homem precisa de se encontrar.

Entras na vida e modelam-te; mestres, amigos, livros, amassam-te e modelam-te. Para quê? Para te fazerem feliz — dizem. Deixem-me ser desgraçado à minha vontade!...

Qualquer árvore incha, cresce e por tal forma se liga à terra, pelas suas raízes, que a esfuraca como nem o ferro do arado a lavra. Só na minha vida não há raízes.

Amigos não os tenho nem os quero, e tudo me parece pardo e inútil.

Ainda a natureza me prende: fico horas a ver um charco e nunca me comovi como diante da árvore mais humilde.

A desgraça que eu tenho encontrado não é a desgraça, nem isto é a felicidade: quero tragar a vida amarga, misteriosa, profunda, toda a vida; quero o meu quinhão tal como o têm os misérrimos bichos, os montes ignorados e os pobres...

Ou vou morrer sem ter vivido.

Só em pequeno é que eu senti correr em mim a vida. Guardo ainda o cheiro à essência dos pinheiros mansos, que eu vi há muitos anos, o cheiro a bravio que o mato orvalhado tinha de manhã, e que me fazia cismar na vida feliz dos lobos e dos bichos, que respiram o ar livre e são; que dormem sem cuidados nas tocas ou nas sombras fofas; que matam sem remorsos.

O nosso quintal! No alto há um muro branco, uma cancela, uma mouta de pinheiros sempre verdes e em diálogo com o mar.

A princípio lembra um labirinto, uma labareda verde. As couves são do tamanho de árvores e a água sussurra, mina por toda a parte, em carreirinhos, embebe à farta a terra negra e gorda. Bordam os canteiros renques de alfazema, cravos, roseiras de flor singela, e ao fundo há uma figueira grande, de folhas espalmadas e carnudas, que dá uma sombra subterrânea. Todo o quintal, esfurancado pela água, ressoa como um cortiço. Cintilações, rumores por toda a parte, por toda a parte a solidão.

Ali as árvores eram minhas amigas, as coisas conheciam-me e eu vivia duma vida convencida, forte, bravia...

Vieram depois as palavras, os mestres, os amigos, e eu nunca mais achei sabor à vida, até que acordei agora com este grito: Nunca vivi!...

Ponho-me a pensar: quantas vezes a felicidade e a desgraça não são verdadeiras, nem sentidas? Máscaras, só máscaras que afivelamos em determinadas ocasiões, porque os autores, os amigos, todo o trama complicado em que nos enredam, nos ensina: — Em tal situação tu serás feliz...

E nós, realmente, por hábito confessamos: Sou feliz...

Mas examina-te... No fundo qualquer coisa de amargo remexe...

Fugi. Isolei-me. Não quis amigos, quis isto: ser só.

Para que chamam o Gabiru? Metido no último andar do prédio, ponho-me a escutar tudo que dentro em mim fala. Esqueci a realidade para conhecer a realidade. Deitei fora o que aprendera, combati comigo mesmo...

Agora vejo a desgraça! agora encontro a desgraça!...

Capítulo XVI
O que é a vida?

O Gabiru não entende a vida. Acha-se de repente num pélago refervendo oiro. Descobre torrentes impetuosas de ódio, torrentes de escárnio, a Árvore, as estrelas, um eterno redemoinho, gritos, levadas de sonho.

Para onde? para onde corre tudo isto? A Morte ao lado duma árvore cheia de flor. Um caos. Treva e sol, oiro em borbotões, e o homem indiferente... Ao dar de cara com a existência, ao ver-se escarnecido, o Gabiru grita.

Pois passa o inverno e a tempestade, vem a primavera e o sol, e o homem nem sequer os olhos ergue? Sob os seus pés a terra move-se, num burburinho, toda ela viva; sobre a sua cabeça a abóbada do céu arqueja, carregadinha de estrelas — e o homem queda-se inconsciente? Há o escárnio, a desgraça, pedras, constelações e o mar profundo e o homem continua impassível.

O que é isto? o que é a vida? o que é este mistério onde o homem entra como a salamandra no fogo? Pode alguém de repente dar com uma árvore cobrindo-se de flor, sem ficar espavorido? No mais desprezível charco se espelha o sol e tumultua a matéria em combinações infinitas — e o homem segue o seu trilho inconsciente!..

Todos os desgraçados se reúnem no saguão para o interrogarem — os ladrões, os pobres e as mulheres da viela. O que é a Vida? o que é a Vida? Uma alma, um sonho? A vida tem realidade? O que pratico sobre a terra é indiferente ou vai repercutir-se algures? Isto é lodo ou fogo, aparência ou temerosa realidade? E o escárnio e a água a nascer fulgindo de entre a terra, a dor, o amor, a nuvem que passa, o vento? Tudo isto é um turbilhão de almas e de pedras, de árvores e de sonho, sem fito, ou esta levada esplêndida caminha para um fim ignorado de beleza? Ideio numa cova, num sepulcro fechado, ou vivo a verdadeira existência?

E os pobres? porque é que os pobres sofrem sem gritos, revolvidos como a terra por este arado — a dor?

Só vêm a este mundo para sofrer?

O Gabiru via-os cheios de resignação seguirem o caminho da vida, cada um com sua cruz, feridos nas pedras aspérrimas, sem pão, escarnecidos, tombando por terra sem poderem mais. Porquê tudo isto? Para quê sofrer?

Ele e o Astrónomo ficaram um pedaço a cismar.

O que os prendia afinal à vida? em que criam? Nesse fim da tarde, chovia e aquilo era lúgubre: como que as coisas os empurravam para a morte. Na vida tudo lhes falhara e aos quarenta anos já se não constroem nuvens.

Só o Astrónomo se consumia ainda em sonho: os outros, sentindo-o feliz, puxavam-no para o fundo, como os afogados aos que se querem salvar.

— Sonhar! sonhar! — pregava.

— Sonhar, deixe-se disso!...

— Que querem se eu nasci para isto? Eu só vivo na solidão, e a vida para mim é sonhar. Como hei de eu, que vivo lá em cima, pobre, com este casaco que de gasto nem sequer me aquece, compreender a existência? Dum lado estou eu misérrimo, do outro um turbilhão de astros... Quantas riquezas! Astros todos de oiro, astros de crime, plagas duma areia fina e rubra e depois largos oceanos desertos... Talvez o céu seja uma árvore sempre na primavera... Infinitos mundos, colossos mudos, que passam, e eu pobre, transido de frio, compreendo e vejo!... Depois, se desço cá pra baixo, nu, a vida parece-me triste e logo corro a refugiar-me no céu.

— Mas a natureza...

— Eu sei, eu vejo do meu quarto: havendo sol é belo: é tudo de oiro e verde. Sei que há árvores, o mar, rios, mas nunca ninguém os viu ao pé...

— Perdão! mas já muita gente... O amigo confunde!

— Na minha pobre cabeça tudo se confunde.

— Sempre sonhar, sempre sonhar! Eu por mim já estou farto de nuvens!

— E que querem que faça, se eu não sei mais nada?

Nem me sei rir, nem sei falar...

Falavam do suicídio, riam do Astrónomo — um sonhador! — e no fundo todos temiam a morte e quereriam ser como ele. Morrer sem ter vivido!... O que haviam tentado realizar, esse esforço para materializarem a própria alma, que outra coisa não é criar, dera-lhes como resultado um bloco gélido e informe, talvez vivo mas um bloco. Por isso a morte os aterrava, a morte que era o nada para todos, até para o Pita então idealista. Sabiam que iam morrer sem ter vivido. A existência não era decerto como eles a haviam compreendido: alguma coisa lhes falhara. Tinham rido de tudo. Só a Morte ainda restava intacta, sem dedadas na sua roupagem negra, com todo o seu mistério e toda a sua beleza. Ela põe, até no homem que na terra representa a omnipotência, o banqueiro, arrepios de alucinação e terror, quando acaso a Havas diz à Terra que um Rotschild acabou duma forma idêntica à dum pobre diabo, ou dum poeta, ou dum santo.

Ela iguala, porque enfim é indiferente ir apodrecer num palácio de mármore ou na vala comum: ela mistura pobres com ricos, heróis e céticos, egoístas e santos, e desse oceano negro não saem nem gritos, nem bênçãos, nem palavras. É o formidável, o misterioso silêncio.

Morrer, dormir, dormir! Sonhar talvez!... — Ela impõe-se ao homem, negra e férrea: quase sempre, porém, sob o seu manto tem claridades de relâmpago.

Nada lhe escapa, e se para uns é madrasta, para outros é noiva.

Os humildes, que vêm ao mundo para gritar, aqueles para quem a vida é aziaga e que vão de rastros até essa praia onde o mar desconhecido rola as suas ondas silenciosas, vêem-no dourado, cheio de claridade, numa madrugada eterna. Apenas caídos, exangues, sem fibra que não tenha sido torcida e despedaçada, sem boca para gritar — eles sabem-no — vão erguer-se e, transfigurados, embarcar nas naus que os esperam para uma viagem de maravilhoso sonho. Para os céticos esse mar e negro, tumultuário, de horror, como aquele oceano nunca dantes navegado, onde só monstros cresciam.

Há pobres e tristes que passam a vida a esperá-la, a sonhá-la. Os humilhados, os ofendidos, amam-na porque ela iguala, os escravos porque ela liberta, e até os incompletos, aqueles a quem não é dado nem sonhar nem amar, porque nela deve existir o Sonho e o Amor.

Cada um encontra nesse pélago o que lhe falta na vida.

E falam! falam... Todos os sonhadores se põem a falar ao mesmo tempo.

— Para quê então ser homem?

— Ninguém sabe.

— Quem me dera não sentir, andar como anda a essência do tição ardido, perdida no redemoinho eterno, ora na mãe d’água, ora no fundo do mar!

— O que é a Vida?

Os pobres a um canto escutam em silêncio aquelas criaturas nascidas entre pedras e que passaram a vida agarradas a um sonho. E não dizem palavra — porque só eles sabem sofrer.

— Mas então mais vale a morte.

— Pois mais vale.

E não vêm lá no fundo as feições consumidas, os olhos fartos de chorar, as cabeças de mártires e de santos que parecem cavadas na madeira por algum escultor ignorante, mas que as impregnou para sempre duma vida estranha. Alguns são verdadeiros seres de espanto; de outros só se vêm as mãos enormes. E a certas fisionomias a luz ilumina-as e a sombra corrói-as como um ácido.

São anónimos. Só eles gastos e mudos mergulham na vida raízes profundas. Os outros dizem palavras, constroem em nuvens — eles edificam. Mas todos perguntavam na mesma ânsia — o que é a Vida?...

Sei lá o que é a Vida? Todos me interrogam e eu debalde me interrogo... Nunca foi só no mundo: fios invisíveis prenderam-me sempre a todos os seres não só pela piedade, não só pela comunhão com os desgraçados, mas por outra coisa maior e mais profunda, por um sentimento de remorso, como se eu tivesse alguma responsabilidade nesta dor e na criação das figuras de desgraça... E tenho medo. Tenho ao mesmo tempo remorso e medo. Nunca entrei numa casa de prostitutas sem pavor. Afigurava-se-me sempre uma cena de outro mundo atroz — e isto é ainda o menos — de outro mundo que eu tivesse engendrado. Um crime atrai-me. O crime fascina-me como se eu participasse do crime, como se um fantasma desligado do meu próprio ser fosse cúmplice do criminoso. Não quero ver e fujo! fujo de mim mesmo!... E a primeira impressão que sinto diante da desgraça não é piedade — é irritação como se eu pudesse sustar o sofrimento e a injustiça...

O que é a vida? Fui eu porventura que tracei este caminho doloroso para que todas estas figuras me apareçam e interroguem?... Estão aqui na minha frente os vivos e os mortos — e não me largam. Somente os mortos não falam. Não é preciso... As fisionomias graves e cansadas contam-me a sua história. Basta olhar para os teus cabelos brancos para saber o que a vida fez de ti.

Estas rugas são sulcos abertos pelas lágrimas. À minha roda estão todos os que me deram um bocadinho de ternura e todos os que encontrei pelo caminho fora — os mendigos das estradas, os velhos, os ladrões, as mulheres humildes e os que choram baixinho para que ninguém os ouça chorar... Até a dor desapareceu — porque até a dor acaba por ser consumida por esta coisa imensa que se chama a Vida. Mas todos, vivos e mortos, todos me fazem a mesma pergunta a que não sei responder: — o que é a Vida? — Figuras de santos e figuras de ladrões com as mãos ósseas e geladas; este velho curvado pela vida até ao chão; estes olhos turvos que não se tiram de mim: — Para quê? para quê... — e esta criança que sofre e não sabe porque sofre e cuja expressão me persegue e se obstina: — Para quê? para quê?... — estes seres nodosos como troncos e que mal sabem falar, e estes de que a vida fez espetros e que desatam em risadas descompostas diante do mistério da vida... Outras figuras estão mais perto de mim e sigo dia a dia as dedadas trágicas com que a vida as vai modelando. Sua dor é mais contida, e misturada de ternura, mas a interrogação, sem ser ansiosa, nem por isso deixa de persistir nem de ser igualmente dramática: — Para quê? para quê?... — Compreendo agora melhor o lado sério e sagrado da afeição, e fito as mãos deformadas, as mãos que eu queria beijar, com dor e espanto. Todos sofreram — todos cumpriram a vida. E nenhum sabe o que é a vida. O céu, esta bondade cega e muda, não responde, a morte não responde... Só sabemos todos que ao lado da vida — é que está a verdadeira vida. Outra vida. A consciência da vida. Debalde desviamos o olhar. Ela é que nos importa.

A Vida está aqui presente — e todos nós pressentimos que a sua sensibilidade é extraordinária e que é tão delicada que por um ato nosso a podemos matar. Essa vida sofre com as nossas ações e aproxima-se ou afastasse em gritos de desespero. Às vezes quer deter-nos, às vezes quer prevenir-nos, às vezes faz esforços enormes para se interpor entre nós e os nossos atos. Às vezes grita e não lhe ouvimos os gritos. Às vezes toca-nos, está ao nosso lado. Às vezes perdemo-la no caminho.

Creio que é essa Vida que nos sustenta. E os humildes sentem-na mais profundamente, sentem-na mais perto de si, porque vivem em maior silêncio e mais isolados, e talvez também porque essa Vida é muito grande e muito simples e se dá melhor com a humildade dos desgraçados. Mas a Vida, que é um clarão ou uma luzinha de candeia que se apaga num sopro — nem eu a conheço nem tu a conheces...

Por fim o Gabiru ficou sozinho com os pobres.

Eles não sabiam explicar a vida: sentiam-na e sofriam.

De pé ainda teimou:

— Foi assim... Disseram-me um dia: — Eis aqui um tesouro, cava! e eu pus-me a cavar. Dum lado e de outro acumulou-se a terra. As minhas mãos eram negras, os meus vestidos cheiravam a terra e eu cavava. A mina era profunda como um poço. O céu esquecera-o, as árvores esquecera-as. Um dia topei pedras que me pareciam luzir como oiro puro e embebido a contemplá-las esqueci-me do tempo, da terra, do mundo... Súbito, cá fora, ouvi rir. Trepei pela terra acima e achei-me com pedras negras nas mãos, cheio de terra, feio e cego como os bichos que nunca viram o sol... E tudo era belo! Tudo o que esquecera, tudo o que desprezara!... Atónito, com as pedras inúteis na mão, olhei... E assim desperdiçara a vida à procura dum tesouro que tinha ali à mão!...

Ninguém me respondeu. Só uma mulher, curvando-se-lhe sobre o ouvido:

— Eu sei o que tu tens, eu sei o que tu tens...

— Que é?

— É pena. A vida não se torna a viver. Perdeste-a.

Esqueceste-te dela a sonhar... a sonhar!... Trocaste o sol, o ódio, trocaste a realidade por nuvens. E, aí! a vida não se torna a viver! A vida para ti foi como a água que passa pelas mãos duma dessas estátuas que tu vês nas fontes.

Nunca cessa, igual, fresca, cheia de cintilações, e nunca também estanca a secura dessas figuras de pedra... Ai, não se torna a ter na boca o sabor a sangue e a mocidade, nem as árvores são as mesmas árvores e o riso o mesmo riso. Queria ter fome e ser moça... Perdeste-a!

Perdeste-a!...

— E tu?

— Eu?... Eu fui nova e todos dariam a vida por mim.

Amaram-me, mas o que eles queriam era o mármore do meu corpo e a minha boca moça e viva. As rugas vieram, mirrou-se-me o colo, seco e inútil, e então arredaram-me.

E dentro do meu peito ardia ainda o mesmo amor.

Como pode meter-se uma nuvem dentro duma pedra ressequida? Desci à humilhação, a procurar o amor que se paga. Isto! isto!... Só então entendi que os homens nos aproveitam e usam para nos deitarem fora depois de servidas... Olha para mim... Envelheci. Há muito tempo que moro com o ódio. Diante do espelho, ao ver-me mirrada, tornei-me ainda mais seca. Escarnecida, deitei-me a odiar... Oh fazer gritar os homens que nos desfrutam, para depois se rirem... E sonhei... Eu sou inútil, o meu ódio murchará comigo, sem poder florir.

Inútil, velha, caída, quem toma aí a sério o meu ódio?...

O que eu tenho sonhado!... E o que eu daria para ter uma filha!...

Saiu também. Só ficaram a um canto os pobres, gastos, com fisionomias de santos e olhos murchos de tantas lágrimas choradas e que não sabiam queixar-se, e meia dúzia de desgraçados que se puseram entontecidos a narrar, numa voz amarga — a voz da desgraça. Erguiam os braços e de cansados e sinistros acreditá-los-íeis foragidos do hospital e da guerra.

Um disse:

— Eu gosto de ver sofrer! eu quero ver sofrer!...

Como ele anda a espreitar ilusões a ver se as calca.

Onde nascem flores logo as esmigalha, nada lhe sabe, nem o sol às levadas. Calca tudo e ri, tudo o que nasce, mesmo a ponta verde da erva que rompe de entre as lajes.

Um velho gasto queixa-se. Quer viver e exclama:

— Fui sempre como as toupeiras, como os bichos que, no fundo da terra, minam e cismam, minam e cismam sempre na claridade e nunca chegam a ver o sol.

— Há desgraças e dores que fazem rir — diz alguém.

Outro ri, ri sempre de aflições, de catástrofes.

Procura dores para se rir e doido ei-lo a rir e a clamar:

— Calcamos terra, hein, calcamos dor... A terra está farta de sofrer.

— Queremos ter saúde e ter risos. Eu nunca me ri, eu nunca me pude rir — prega uma boca na escuridão.

O Gabiru sente-se agarrado pelo homem que vivia nas trevas e que fugira das trevas.

O olhar reluz-lhe e a sua voz, através do pano que lhe tapa a cara, parece provir dum túmulo.

— Leve-nos! mostre-nos o oiro, as árvores, os montes todos de oiro, mostre-nos a vida!

— É impossível...

— Oh não saber nunca o que é amar, viver como os outros que se podem rir — e ser só, ser diferente!... Eu vi!

Eu vi!... Mas não, eu não sou amigo do sol nem das árvores! Tenho a minar-me a alma uma ferida como esta... Os risos com que os outros se riem, os seus risos — e eu sem boca para rir!... Esta ferida come-me a vida — e triste vida de aflição a minha! Fui sempre doente. Até em pequeno senti a piedade agasalhar-me. Porque é que Deus faz nascer criaturas com vida e dá a outras um quinhão de negrura? Tenho frio e fome de sol, de saúde, de forças e vivo gelado, sempre gelado, e sem poder olhar nada no mundo sem sentir rancor. Tenho inveja até da terra onde nascem pedras e cardos, porque ela ao menos não sofre. Dêem-me o quinhão de risos que me pertence!... Se eu te escancarasse a minha alma, tu a verias transida, negra, mirrada... Ouvi dizer — é certo? — que até as árvores noivam... Eu apenas sei que existe a inveja, a dor e a enfermaria, onde o próprio sol requentado sabe a hospital. E nunca ninguém quis saber de mim, nunca! Que me dera beijar! ter boca para beijar!

Ter boca para beijar! Diz-me: há porventura pedras nojentas?

Arrancou o pano da casa e uma fisionomia de túmulo, onde os dentes surdiam pela carne dilacerada, rompeu de entre os trapos que a cobriam.

— Olha! olha pra mim!...

Saíram — e atrás de todos, não tendo dito palavra, caminharam os pobres, curvos, descalços, resignados.

Havia-os gastos pela dor; havia-os tirando o pão da boca, para o repartirem; havia-os com uma vida de lágrimas.

Saíram uns atrás dos outros, sem queixas nem gritos.

Afinal todos tinham desaparecido; só na escuridão ficara uma velha prostituta. Era quase uma coisa — a podridão. Não sabia falar, nem sabia queixar-se. Tinha aparecido para dizer o quê? Que acusação tremenda contra a vida?

Chegou-se a ela o Gabiru e pôs-se a olhá-la. Depois perguntou-lhe:

— Tu que tens? tu que queres? Vai-te!...

Ela não respondeu, e ele esquecido ficou muito tempo a cismar. O que era a Vida afinal?... Pouco e pouco um clarão se fazia na sua alma... O Gabiru absorto sonhou, até que a seu lado uma voz rouca lhe disse:

— Mas então pra quê? pra que criam a gente? Eu tenho amargado a vida e nem posso gritar... E tu?

— Eu também... Mas olha: eu gosto de sofrer...

Escuta: sofrer é afinal reanimar uma labareda, um fogo que se extingue... Possuir um sonho e vê-lo calcado!...

— Eu cá fui sempre assim, andei sempre assim...

Quem se importa? Não me lembro de ter sido feliz...

Não me lembro... Sempre se riram de mim e toda a vida me bateram.

— Tu sim, pobre de ti... e amaste?

— Não me lembro. Depois de servida batiam-me.

Eu fui sempre menos que nada. Quem se importa! Inda se a gente encontra o pão de cada dia... Agora sempre anda um frio!...

— Tu sim... Pobre, pobre de ti! Eu fui feliz, fui sempre feliz afinal. E batiam-te?

— Punham-me o corpo negro... E a ti?

— Puseram-me a alma negra.

— E tu?

— Eu sofria. Diz o que sofreste.

— Não me lembro.

Encostados um ao outro, para se aquecerem, cismavam, enregelados, quase cobertos pelos mesmos trapos. Noite escura, mas no sítio onde eles encolhidos sonhavam, pareciam arder faúlas, restos dum lar a apagar-se.

— Ouve, não chores... Tens frio?

— Estou gelada de frio.

— Olha: sofrer não importa, sofrer na vida, que importa? Tu imaginas que o que se sofre se perde? As lágrimas e as dores vão criar, para depois, alguma coisa de extraordinário. Do que se espezinha vem sempre a nascer. E se tu amaste e se riram de ti, alguma coisa brotou, que se não extingue e germina com as tuas lágrimas e os teus gritos. Amaste?

— Tudo perdi! tudo perdi!... Não fales! oh não fales! Não me lembres!...

— Se tu amaste e sofreste nada é perdido. As tuas mãos estão geladas, mas as minhas ardem.

— Eu já não sinto o frio... Só me sinto de rastros, pequenina e perdida... Oh dói-me e tenho pena de mim.

Tu para que falas? De que serve a gente lembrar-se? Para chorar? É melhor dormir, dormir sempre...

— Nada é perdido. Olha: vai-se criando com as nossas aflições e os nossos gritos uma outra terra!...

— Aonde?

— Uma terra toda alma, cria-se, para depois, quando à última dor, aos últimos gritos, se esbrasear...

— Conta! conta-me!

— Escuta: quando se traz um sonho... Sabes, um sonho?

— Um sonho?! Não me lembro!

— Um sonho é como se tivéssemos na alma um mundo maior que este. Todo em fogo... Quando se traz um sonho e se sofre, mais ele cresce. Tanto mais puída é a matéria, mais ele arde!... Isto não se perde... Constrói-se das nossas lágrimas... É um palácio. As pedras de que é feito são os gritos... Sabes?

— Um sonho!...

— Tudo se ilumina dentro de nós. E a cada humilhação ele se torna maior. Depois que sofri, é que comecei a ver o que nunca tinha pressentido. Tudo.

Sabes, as árvores, as nuvens, as estrelas? vejo-as agora transformadas, de fogo. Arde... Nunca é noite. E tanto mais sofro, mais se ateia o meu sonho.

— Não sei nada.

Ambos se perdiam, unidos, gelados, na escuridão. Por fim só a voz dele corria: ela escutava-o sufocada, unida contra a terra, rasa como a terra.

Capítulo XVII
História do Gebo

Para nada me importa a história banal que esse homem gasto conta, abalado pela dor, a suar de aflição...

Morta a mulher, o lar ficou gelado. Por onde a morte passa deixa muito tempo um frio de túmulo que transe os corações. A filha caíra a um canto sem palavra e o Gebo pôs-se a engordar e a chorar. Se tudo acabasse!...

Mas não, era preciso tornar à mesma vida de desespero, pisar sempre o mesmo chão, atrás de esmolas para a sustentar.

Nos dias, agora amiudados, de fome, já ninguém o esperava numa ânsia como outrora:

— E então? então? arranjaste?...

Sofia, essa pobre rapariga que da vida só conhecia aflições, não tinha para o Gebo nem más palavras, nem queixas. Amava-o. Aquele velho todo branco, gordo, e chorão, era o seu pai. Escondia as lágrimas para não o afligir.

— Não se consuma! não se consuma!

— Que há de ser de ti se eu te falto, filha?

— Sempre havemos de viver. Há gente mais pobre.

— Acho que não! acho que não!...

Depois da morte da mãe, ela o cuidava como quem cuida um filho. E o Gebo de olhos postos em Sofia, embevecido, só sabia dizer, numa voz molhada de lágrimas:

— A minha filha! a minha pobre filha!...

Fazia falta a mulher, que o atirava para a vida, e muitos dias, sem um exaspero, sem um grito, embrulhado nos farrapos, quieto na enxerga, ele era como uma bola de gordura, donde corria um ruído de choro resignado e triste. Fazia-lhe falta aquela figura amarga. Se saía chegava-se a todos, pedindo pão, com os cabelos em pé e um ar desorientado, de doido, que fazia rir. Perdera a timidez. Arrastava-se pelos amigos, que o achavam pitoresco, sempre a carpir desgraças, aflito, cambado, exausto e cada vez mais pedinchão e mais gordo.

Divertiam-se. Tinham-lhe posto essa alcunha — o Gebo, e perguntavam-lhe coisas obscenas para se rirem:

— Hein, diz lá, ó Gebo, então tu não tens uma filha?

E ele logo com um riso no olhar:

— Tenho, sim, uma filha, a minha filha...

— E que tal, hein, boas pernas, diz, boas pernas?

Humilde, coçado, à espera da esmola, sem forças para protestar, respondia com um sorriso e lágrimas à mistura:

— Boas pernas... boas pernas...

É neste momento da existência que ele aceita a desgraça. O velho não entende e aceita. Talvez já não pergunte o que é a vida. A desgraça usou-o até ao ponto de aceitar tudo. Estão unidos ele e a desgraça. Já não há nada que espante esse homem gordo que só tem um desejo — dormir, que dorme de cabelos brancos estacados.

O Gebo transformou-se numa figura, não pela declamação nem pelo aspeto, mas por dizer que sim à desgraça, por aceitar totalmente a vida e a dor. Lá vai levado, enlameado e de rastos, a chorar. Ilusões? já as não tinha, se ilusões não servem senão para se sofrer.

Quando viva, a mulher era quem ainda arcava com a sorte. Esbracejava. E juntos aquecia-os no mesmo lar, com pedaços de sonho, como quem, depois de repartir os últimos farrapos, agasalha com a própria alma. Um sonho cai por terra? Estreia-se outro sonho. Embrulhados no mesmo cobertor, ela, seca e nervosa, pregava-lhes que ainda podiam ser felizes, acalentava-os e, todos três iludidos, ficavam naquela negrura e desespero, todos três a cismar.

Mas agora nem isso... Enregelados não apelavam para a ilusão. Ele chorava e Sofia, alheada e triste, cuidava, ambos sem palavras que dissessem. Oh seria tão bom morrer, descansar, dormir por uma vez sem mais acordar!... Mas, aguilhoado e ridículo, aquele homem pícaro apegava-se como um desesperado à vida. Ainda por cima o Gebo tinha medo à morte.

Assim comiam o pão negro, ajuntando-lhe as lágrimas que choravam. Sob este solo que calcamos atrás das nossas ambições, anda um humilde rio de lágrimas, um rio subterrâneo de dor, de gritos, que se alastra e corre sem ruído...

Já não saía a pedir todas as madrugadas. Agora cansava, mal podia andar; embrulhado e tiritando de frio, não se erguia da enxerga. Quereis crer que estava mais gordo e mais pícaro?

E como ele dormia! com fome, aflito, tombava num sono de sepulcro, espapaçado, os cabelos todos brancos e a fisionomia cansada e amargurada. Nunca se queixava; apenas repetia a miúdo:

— Tenho pena de ter sido honrado...

Porque é que a desgraça se não cansava de o perseguir? Este aguilhão cravado no peito não lhe deixava um minuto de descanso: a sorte da filha. Nada lhe custava mais do que deixá-la no mundo ao desamparo.

— Tenho pena de ter sido honrado.

Para que serve ser bom? Os maus que conhecera estavam ricos e escarneciam-no, os bons espezinhados.

Criaturas a quem o Gebo salvara acolhiam-no com risos e só fizera ingratos.

O Gebo não entendia a vida.

— Ó Gebo! ó Gebo! — gritavam-lhe.

E ele meio tonto:

— Anh? anh?... Se eu não tivesse sido honrado...

Ela era uma criaturinha triste, resignada e pálida.

Falava pouco. Cismava. Da vida tudo ignorava, a não ser a história dos seus: o lar apagado, a aflição da mãe, o choro do pai ao voltar para casa sem pão. A velha dizia às vezes más palavras ao Gebo, quando lhe perguntava ansiosa:

— Arranjaste?

E ele, a bufar, exclamava sucumbido:

— Valha-me Deus, mulher!

Nesses dias aziagos ela dizia impropérios à vida e ao Gebo, que nem sequer tinha forças para as sustentar a ambas.

— Olha os outros! olha os outros!

E ele atrapalhado:

— Mas que hei de eu fazer, mulher?

— Vai roubá-lo! vai roubá-lo!...

Aquilo terminava por lágrimas e por o velho perguntar, perdido de fome, todo o dia na negra faina:

— E agora como há de ser?

A mãe tinha escondido alguns vinténs tirados à boca e em torno do pão, esquecidos, lá se deitavam a falar da sua miséria.

De forma que Sofia nada sabia da vida, e assim fora crescendo sem queixas, resignada e pura. A Deus rezava todas as noites pela vida do velho, pela saúde daquele ser ofegante e grotesco, que passava horas e horas a chorar.

— ...O pão nosso de cada dia nos dai hoje...

— Filha, que há de ser de ti!

Engordava, não se podia mexer. Faltavam-lhe de todo as forças. Estendia a mão na rua como os mendigos.

Um dia foi preso, e expulsavam-no das lojas. A ideia da filha abandonada e com fome alucinava-o:

— Eu já não posso mais! eu já não posso mais!...

Os dias passaram-se desesperados, idênticos, ferozes. Todos os dias se pareciam, como a desgraça se assemelha à desgraça. Até que caiu por terra, e durante a noite inteira correu na mansarda aquele ruído de lágrimas baixinho e monótono; toda a noite infinita o Gebo chorou prostrado. Quis tentar, quis ainda erguer-se, mas a desgraça havia-o enfim aniquilado: engordara-o, exaurira-o e pregara-o para sempre a chorar num colchão de trapos.

Então Sofia, que um dia e uma noite o viu chorar sem tréguas de olhos postos nela; que outro dia e outra noite, sem gritos nem frases, o viu todo branco e com fome, de olhos aguados, no mesmo choro de aflição — alheada, mais alta, desceu as escadas e entrou em casa das prostitutas. Todas as tardes descia e tornava altas horas, com pão para o Gebo, que só lagrimejava, prostrado, de muito longe, dum mundo de alucinação e de cabelos estacados.

Oh este cantar das mulheres, esta toada em farrapos, é a voz dos desgraçados, dos pobres, dos que não têm pão, nem felicidade na terra, e vem de muito longe, dum mundo de alucinação e de dor.

Capítulo XVIII
O Gabiru treslê

Noite de luar. A Árvore mergulha os braços esguios num oceano de luar translúcido, biliões de átomos luminosos errando. Primavera... Houve uma coisa que eu sinto, mas que não sei descrever. Esta primavera caída lá para o fundo, que queria ser primavera, e que revolvia na escuridão totalmente cega, e aquela Árvore de saguão que queria ser árvore e que se lembrava numa dor emudecida do espaço e da luz... — E não morria! e teimou.

E subiu, toda dor e desespero. Teimou e subiu. Teimou branca e imensa e com uma vida estranha... Por pouco ouvi-la-íeis falar... Escutai-a na noite calada e cheia de tanto luar que faz aflição. Por entre os raminhos tremeleiam fios de luar esquecidos. No chão a sombra da parede faz mancha e os fios de luar dão-lhe vida.

Diríeis que ali anda fôlego vivo. Fora da sombra é tanto o luar que só se vê uma brancura. Por pouco ouvi-la-íeis gritar...

O Gabiru cisma. Os olhos abertos, todo ele dolorido, deita-se ainda a cismar. Vivera sempre tão transido e pobre, tão sozinho — que lhe não fugisse o sonho — e nada lhe ficara entre as mãos. Só escárnio! só escárnio!...

Bate o luar em cheio naquela figura exótica e transforma-a, Não é ridículo. Corre-lhe o luar nos olhos, nas mãos estendidas, e cheio de luar sorri extasiado...

Hein, que queres tu? Nasce uma criatura para a desgraça. Em pequena anda rota, quase nuazinha, e o pão da vida dão-lho os ladrões e soldados. Maltratam-na, irmã da terra, rasa como a terra. Nada sabe do sonho — e que culpa tem ela de não sonhar? Violam-na, tornam-na igual das pedras, seca como as pedras, mesquinha, e arrancam-lhe todas as aspirações, cospem-lhe em todos os sonhos. Só sofre. Vêm uns, vêm outros para a fazerem gritar, e ela um dia põe-se a rir e ri-se até da desgraça.

Julgaríeis que na sombra, sob a árvore, o luar constrói e tece, à medida que o Gabiru vai tecendo. É não sei o quê de incerto que mexe — fio de luar ou vento que passa e vai transir a sombra misteriosa. O Gabiru olha extasiado.

Da terra dilacerada surgem formas de prodígio.

Quanto mais revolvida a matéria, mais bela é a eclosão do sonho. Da vida da Mouca que começou a sofrer em pequenina, logo a princípio se criou algo de radioso. Ela ria, a Mouca, escarnecida e calcada, sem ter tido quem a ampare senão prostitutas e ladrões. Nasceu para gritar — e ri. Mas nada se perde na vida. Ela que tudo ignora, rolada como as pedras no enxurro, conhecerá o extraordinário sonho. Daquela matéria espezinhada vai nascendo uma maravilhosa forma de luar.

O filósofo sorri extasiado para a Sombra. Ei-la!

Uma fisionomia pálida, onde os olhos cegos se perdem, ténue, construída de luar ou construída de sonho. Direis que essa figura esguia, sustentada a luar, de negros cabelos de sombra, desaparece no escuro, torna a surgir nos fios de luar...

— Fui eu que te criei, és minha! — diz ele absorto, erguendo-se. — Caminhas para mim alheada, não me querendo olhar e não me podendo fugir, pálida e tremendo. Vens sob o tecido do luar. Oh que palavras te hei de dizer, ajoelhado, que singulares monólogos feitos de nada e enormes, arrancados à vida láctea, com palavras que nunca aprendi, nem soube dizer, mas que me brotam da alma como nascentes! Quem me dera ser a noite, a árvore, o luar, que me enche de aflição! Juro-o, as árvores falam com o luar, as montanhas namoram-se ao luar. Brilham perdidas tantas estrelas pelo céu, meu amor!... Os sapos, confundidos diante da giganteia natura, cantam nesses pios que, ao longe, na solidão, magoam como ais de alguém a quem aconteceu desgraça...

Olha: eu sinto-me distante de ti, para que não fujas desfeita em luar. Gostava tanto de sentir a tua mão pousada na minha cabeça, tanto! Olha!...

Sob a Árvore — realidade ou ilusão? — uma figura se constrói de luar, na sombra opaca uma tremulina toma forma. Juntam-se os fios de luar, amontoam-se névoas e alguma coisa treme, prestes a fugir — mas viva! viva!...

Diríeis que é só um sorriso, um olhar muito triste... O Gabiru corre e tudo se esvai... Só a Sombra resta e um ruído de gotas de luar tombando sobre a Árvore.

Ele sorri e diz:

— Eis como se cria uma alma!

Todas as noites, muito tarde volta para ao pé da Árvore.

— Uma é terra, outra é luar — murmura. Quanto mais a Mouca sofre, mais esta se cria. Oh, não me fujas!

Vens com a noite, melancólica e pálida como as mortas arrancadas ao sepulcro. Criei-te de lágrimas. Os teus cabelos esparsos perdem-se na sombra. Nunca vi na escuridão os teus olhos, mas sinto a irradiação da tua alma!...

O Gabiru, na noite branca e calada, sente-a aproximar — se e olhá-lo muito tempo.

— Minha alma!

Nem um murmúrio. Noite a noite era mais o luar.

Absorvia tudo. A sua claridade misteriosa diluía a terra e as coisas. A Árvore imensa e só dor, a Árvore esmaecida, toda se desfazia em pó claro. E noite a noite também a Sombra opaca se tornava mais espessa e funda.

A certas horas o silêncio estremecia, num ai baixinho e triste. Era a criação! A alma da Sombra acordava. Ei-la! Ei-la!...

— Minha vida!

Via-a perfeitamente. O oval do rosto pálido, os negros cabelos compridos, inteiramente feita de sonho e de lágrimas. Só os olhos se perdiam em duas sombras, cega talvez de tanto ter chorado — por a outra rir.

— Não fujas!

Correu um dia para a Sombra. Lua cheia, lua alta.

O mundo, todo embebido em luar, era como um grande sonho de beleza. Logo a imagem se esvaiu e na sombra funda, na sombra opaca, restavam apenas manchas vagas e dispersas, luar desfeito... Apalpou a terra. Havia um ruído ainda — pelo chão corria um fio de água ou um fio de choro...

— Meu amor! meu amor!

Capítulo XIX
A Mouca

Noite de chuva, desta chuva miúda que enlameia e entristece como uma angústia. Na rua Sofia passa com o xaile de rasto. Há um clarão de tochas à porta. Vai sair um enterro. Morreu o pequeno do gato-pingado. Trouxe-a para casa uma noite, a essa criança que encontrou caída na rua. Um rapaz de dez anos, abandonado e com uma pneumonia... Que lhe queria o gato-pingado fazer, não me dirão?...

Estava a chorar. Deu-lhe para chorar sobre o caixão dum garoto, que não lhe é nada. Ele que não tem onde cair morto, chora o pão que tiraria à própria boca para dar a outro.

Morreu-lhe ontem. É decerto um gato-pingado a menos.

Primeiros farrapos da noite a esvoaçar, dessa noite de primavera negra, em que todos se põem a contar baixinho os seus sonhos à escuridão.

— Deitam flor à noite... — diz o Astrónomo.

A treva entupe os buracos das ruelas. As tochas têm debaixo da chuva sinistros clarões de incêndio. Vai uma balbúrdia na rua e o redemoinho da noite traga o bairro acastelado. Eis o enterro. Vão mulheres perdidas e uma velha a tossir, vai o Astrónomo, e na frente dum caixão de passarito, comboiando a turba, lá marcha o gato-pingado, de brandão em punho, chapéu alto e casaca a esvoaçar... A que irão eles deitar fogo na noite trágica, de lama e chuva? Mulheres perdidas, ralé, o velho tísico...

Todos os dias desaparece alguma das mulheres levada para o Hospital. Mas cantam, cantam sempre.

Sofia sorri resignada. Na vida que lhe resta?

O Gebo a sustentar.

Todas as manhãs sobe à mansarda onde o velho dorme, levando-lhe pão, que ele mastiga com um nó na garganta. Olha-a com lágrimas e só diz:

— Filha!

Dizem-me: a que recanto espantoso vai a natureza buscar esta ígnea bondade? A que esconderijo, a que veio oculto? De que força é que se constrói, de que química é que se forma a bondade profunda, inabalável, inextinguível, que sustenta e ampara os pobres?...

As prostitutas, que dantes odiavam Sofia, chamam-lhe agora menina, depois que a veem sua igual. Repartem com ela o pão que ganham, e ao vê-la caída, chorando, ficam aflitas, porque não sabem consolá-la.

— Mais lhe valia deitar-se a afogar — diz uma.

— Isto aqui é uma vida de cão.

— Olhai que ter fome!... Sempre a fome é negra — conclui outra.

Só a Mouca a odeia. Ela que foi sempre a mais maltratada, maltrata agora. Se pudesse, pisá-la-ia aos pés.

Ela, de quem todos se riam com escárnio, cuspida pelos soldados, quer fazer sofrer. Não há ser mais degradado, não porque seja má, mas porque é como todas as criaturas que o homem cria para o gozo.

A princípio todas faziam sofrer Sofia. Tinham vontade de a rebaixar, de a verem chorar lágrimas de aflição para a igualarem.

— Cá temos a menina!

— Quem no diria? Não falava a ninguém a mosquinha morta! E para aprender!

— Deixai-a!

— Deixai-a o quê? Ela é como as outras.

— Deixai a pobre, que não faz senão chorar. Vocês não têm coração.

— Também a gente sofre.

Riam-se, empurravam-na para os piores tratos, mas pouco e pouco, diante daquela dor silenciosa e profunda, calaram-se. Tratavam-na por menina. Uma queria penteá-la, outra ajudá-la. Só a Mouca lhe tinha o mesmo ódio.

— Olha lá, ó parida!

— É comigo que fala?

— Faz-te tola! acaba lá com esses ares de senhora.

Já estou farta. Tu aqui és tanto como eu, sabes?

— Sei — diz Sofia.

— Tu conheces-me? Olha se me conheces, senão ensino-te quem sou. Acabou-se! embirro com isso.

Pareces uma sonsinha... Tu falas?

Sofia olha-a silenciosa.

— Ah, tu não falas? Olhas pra mim com cara de escárnio? Não quero que olhes pra mim, não quero, ouviste? Ai, não falas? Toma!

E deu-lhe uma bofetada.

— E agora? agora? Quiseste, aí tens. Toma. Tu aqui és uma desgraçada como eu. Aqui não há meninas. E agora? agora? pensas que és mais do que as outras?

— Sou mais desgraçada.

E pôs-se a soluçar.

Mas de súbito a Mouca gritou:

— Perdão! perdoe-me, menina! Eu era por inveja.

Saiba: não a podia ver por inveja. Fui sempre assim, Não me fique com raiva. Eu dizia cá comigo: Então os outros têm mãe e eu nunca a tive? Os outros são infelizes um dia, mas eu fui infeliz desde que nasci. Criaram-me os ladrões, já deve ter ouvido. Tenho sido muito má pra a menina, peço-lhe que me perdoe. Era por inveja. Peço-lhe que se ria pra mim, para me mostrar que não está zangada comigo. É boa! eu dizia cá por dentro: hei de pô-la tão rasa como eu. Que é ela mais do que eu? Sabe porque lhe tinha esta osga? Por ver que a menina era infeliz e boa pra todos. Eu sou assim, sou como um cão.

Peço-lhe uma coisa... Bata-me, para eu acreditar que é minha amiga.

Capítulo XX
A outra primavera

Os dias passaram-se e a Árvore era um colosso esbranquiçado e mudo. Nessa noite o Astrónomo encontrou o Pita desvairado, com o xaile-manta ao vento.

— Pita, você tem um ar estranho.

E o Pita, transido, murmurou:

— Você deve tê-los visto. Nascem, irrompem da treva...

O outro, cheio de serenidade, afiançou:

— Foi a primavera.

— A primavera isto! O amigo desvaira. Como a primavera? Eles só aparecem de noite, criam-se nos saguões. Deparo com criaturas que nunca vi. Uns são lama viva, outros que são?... Homem, dir-se-ia que todos os sonhos tomaram corpo.

— Tomaram. Tenho pensado nisso. Pois foi a primavera. Você tem visto um charco, lama e água revolvida? Vem a primavera e aquilo transforma-se. O mesmo sopro que faz bater mais alto; o coração dos montes cria naquele palmo negro a vida — murmúrios, gritos, um arrancar de mistério. A primavera faz isto; transforma o húmus inerte numa vida furiosa. Eu já vi...

— Então...

— Então, Pita, você medite, é isto... Esta lama que se cria nos saguões, homens, gebos, emparedados, pôs-se com estas noites a criar... Veio dali — e apontou para os lados do Hospital — um eflúvio, o mesmo que faz nascer as árvores, e eles estremeceram abalados.

— A noite tem realmente qualquer coisa que aflige...

Opressão, mistério...

— Emoção que foi até às tocas onde eles criam.

Puseram-se a sonhar e criaram. Ora escute... Ouve um frémito, o escachoar dum rio, gritos?... E, como se a gente pusesse o ouvido de encontro à terra...

— Criaram?

— Criaram. Isto que nós vemos não são eles, são aparições. É o que eles sonharam. Os sonhos dos desgraçados tomaram corpo. Só nós é que não podemos sonhar.

— Nós não, nunca mais... Os sonhos dos desgraçados tomaram enfim corpo!

— Tanto sonharam! tanto sonharam!...

— Mas foi a Noite então?...

— A Noite. Uma primavera negra, feita de emoção e de noite. Eles só deitam flor à noite e só podem sonhar à noite.

— São afinal, é certo, sonhos. Uns parecem estátuas vivas, outros são disformes...

— Eu tenho visto. É uma amálgama singular.

Criaturas de fogo, outras de crime. Di-las-íeis revolvidas, homens e sonhos misturados, um rio que tudo acarrete...

— O que eles sonhariam para chegar a materializar!

— De cada canto surgem. É inesperado e imprevisto.

E dos sítios mais negros é que eles irrompem em brasa.

Ontem vi um que parecia uma flor — branco, todo branco ou de luar gelado...

— E falam!

— Falam, pregam! Ouve-lhe os gritos?

Era na realidade uma mistura de sonho e vida. O bairro leproso estremecia. O Prédio, queria ele própria criar. O rio subterrâneo estropia cóleras, engrossara, rompera para a luz. E a Árvore imensa enchia o mundo.

Não era uma árvore como as outras, cheias de frescura e rumores — uma construção viva, com pernadas e folhas que se agitam, um gigante forte e simples. A Árvore era enorme e só dor, esbranquiçada e só dor. E aquela dor materializada e de pé, chamava todos os desgraçados, atraía-os de muito longe até ao fundo do saguão, em frente do hospital de pedra, compacto, e monstruoso.

Noite revolvida até às entranhas, fisionomias revolvidas até ao âmago — espetros de ladrões, de prostitutas e de pobres... À roda a cidade confusa e indistinta, léguas de pedra uniforme, e para lá mais pedra aglomerada. — A cidade era odiosa ou a vida é que era odiosa?

Falaram baixo. Depois calaram-se... A Árvore vibrava toda sensibilidade, duma vida só dor, duma vida irreal e estranha — só dor...

Silêncio. E eles no saguão imundo viram primeiro (todos encolhidos, e encostados uns aos outros) uma paisagem ao luar. Choupos direitos. Uma poça com limos. E o luar trespassando as camadas das folhas, até reluzir num fio à tona de água... — Murmúrio leve de folhas... — Talvez fosse a Árvore a falar... A névoa vem do fundo e flutua em rendas como fantasmas... Ao longe a ternura duma fonte caindo pingue que pingue numa lasca de pedra — e mais perto outra coisa, outra coisa maior, um sentimento que nos põe em comunicação com não sei quê que não entendemos, mas cujas mãos benéficas sentimos — uma lei que domina os pobres bichos e o homem só reflexão e cérebro, impressão angustiosa que nos leva aturdidos...

— Que sentes?

— Espera! espera!

— Ouço gritos e vejo uma grande brancura! O que eu ouço! o que eu ouço de vozes!

— É a Árvore!

— Calem-se! calem-se!...

Calaram-se todos e depois durante um momento, sob o luar magnético tiveram a visão nítida duma floresta imensa... Viram a floresta prodigiosa, a floresta calada, sob o jorro. branco do luar. Silêncio e depois do silêncio corre um murmúrio que vinha de muito longe, agitou as folhas, trouxe consigo vozes de bichos, ruídos indistintos e por fim o vento carregado de pólen e a voz dum mar que se espraia. Tudo outra vez se imobilizou e ouvia-se cair o jorro do luar todo branco sobre a floresta impenetrável... O rumor dum bicho na folhagem tornou o silêncio mais profundo e mais sagrado. Na noite, e muito. ao longe, reluzia uma estrela enorme... Os desgraçados olhavam sufocados. Cheirava-lhes a terra, pressentiam outra vida desconhecida. Aquilo durou minutos — mas durante esses minutos alguns seres compreenderam, outros deram as mãos e as mulheres choravam. Só o homem que vivera sempre emparedado ficara mais desvairado depois da comunicação da Árvore e pregava aos desgraçados.

Viam-no curvar-se sobre os míseros e falar-lhes baixo, precipitado, rouco. Deixava-os a cismar de olhos febris.

As suas palavras ardiam. E subterrâneo, incansável, férreo, minava. Ia à procura de ódios para os atiçar.

Pregava-lhes, apontando o Hospital:

— É ali! ali!...

Falava dos montes e das águas, mas confundia tudo: aquela noite de Março esbraseara-o.

— É uma coisa esplêndida! É ao mesmo tempo a frescura e o fogo, um incêndio verde que pacifica e estanca toda a sede. Águas a rolar e árvores esgalhadas falando... Sabeis o que são árvores? Há ali montanhas de riqueza, tesouros para lá da dor... Deitai abaixo! deitai-o abaixo!...

Todos os desesperados conheciam essa figura que surdia com a noite.

— Há montes todos de oiro erguidos para o céu, há oiro nas árvores, oiro nos montes e no tojo... Todas de oiro são as águas a rolar. Há seda viva e árvores... Há árvores! E tantas vozes a falar... Tudo fala! tudo fala!

E os pobres, os transidos, os homens encardidos de desgraça, escutavam-no e punham-se a falar sozinhos.

Primeiro a Árvore, e depois aquelas palavras, empoeiravam-nos de inquietação e tristeza. A noite era como um brasido que alguém remexe. Ouvira-se o primeiro murmúrio, a zoada como um rio que incha e trasborda.

— Há oiro! para lá há oiro!...

E era como se do globo tivesse irrompido uma torrente de sonho. O Prédio parecia abalado. Todo aquele terriço de criaturas o esbraseara.

— Tanto sonharam! tanto sonharam!...

Pobres, que fariam senão deitar as mãos tábidas a um outro universo que eles pressentiam ígneo? À força de sonhar materializaram o sonho.

Ei-los gastos e ardidos. Depois de dar luz, um toro converte-se em cinza, e no rescaldo todos os toros se confundem. Não conheciam da vida senão a dor.

Gesticulavam, olhavam absorvidos, perdidos de emoção, como quem descobre nova terra, e deitavam-se a falar uns para os outros sem se entenderem. Nem sequer se ouviam. Cada um narrava a sua ânsia, dizia a história pobre ou doirada da sua alma. Pelos sótãos, nas mansardas e nos saguões, encontrava-se aquela levada cismática, tolhida de sonhar. Duns para os outros ia o emparedado e falava-lhes com palavras que os coloriam e lhes faziam precipitar as ilusões represas...

É verdade afinal que há árvores e fontes todas de oiro? Porque é que eu nasci para sofrer? Porque é que existem vidas, como a de certas sementes, que não chegam a ter força de germinar?

Tocados dessa primavera negra cada um, à força de sonhar, criara uma figura, desdobrava-se. Dos seres trágicos, rotos, calcados, nascera uma aparição de beleza estranha; de outros névoa, fantasmas. Todos traziam o seu companheiro — e havia homens acompanhados por árvores, pelo ódio, pelo riso e por monstros... Um momento e estas figuras adquiriram a sua verdadeira expressão, um momento e Árvore, Hospital, pedras, tiveram outra significação... E os desgraçados querem ver. Querem ver o que se passa para lá das pedras, para lá do mundo atroz.

— Ei-los que deitam flor! ei-los que deitam flor!...

E na noite eles botavam realmente flor, sonhos tristes, mealhas, almas que nem sequer podiam exalar ilusões, sonho de sebes, de calhaus, de tudo que no planeta se cria de ignorado, de calcado e de humilde.

Capítulo XXI
A Morte

Oh eu já não sei bem, pobre de mim, o que e realidade e o que é sonho. Por vezes me parece que o próprio Hospital se põe a falar pela sua boca de pedra.

Em noites de luar, quando tudo para lá se envolve em álgido luar, ei-lo que enternecido conta sonhos rotos e tristes, o sonho dos pobres, dos cegos das estradas, coisas humildes e no entanto vivas, como os fiozinhos de água, que apenas convivem com uma lapa e um farrapo de musgo, esquecidos no globo, mas que exalam uma frescura enorme...

Encontraram ontem o Astrónomo estendido na latrina. Ultimamente ia-lhe no crânio um ruído estranho.

Constelações de fogo, mundos e coisas terrenas confundiam-se. Absorto, tremendo de frio dentro do casaco de alpaca, olhava o céu num êxtase. Donde tombara? Da fome ou dum sonho? Consumira-se com um tronco num lar.

Deram com ele caído na tábua molhada daquela ignóbil latrina de casa de hóspedes. Nos seus olhos, mesmo mortos, ficou luciluzindo uma poeira de espanto.

Morrera surpreendendo algum mundo desconhecido ou descobrindo outro sonho tão vivo, que, de vê-lo, caíra fulminado? Em torno era o asco: as paredes com dedadas, versos obscenos e legendas prodigiosas — e entre aquela lama o Astrónomo morto era como a claridade das constelações, que luzem até no fundo das latrinas.

Um rio, dir-se-ia um rio, com coisas trágicas à tona.

Só a Árvore cresce e à medida que ela cria forças a Mouca se consome. A tosse desconjunta-a. Criou-a a desgraça humana, construiu-a do lodo das ruas e da abjeção. Mas a dor vem e purifica: é como o fogo que torna um galho apodrecido, atirado ao lume, no ramo do oiro mais fulgido. Magra, alta, luziam-lhe os olhos dum brilho estranho. Riem-se os soldados, batem-lhe os ladrões e só ela não ri como outrora. Se a fazem sofrer, a Mouca chora. Um dia ao ver que batiam em Sofia diz-lhe:

— E se nós nos matássemos?

— Cala-te! cala-te!

— Sabe a menina? Eu não sei que tenho, já não me importo de viver. Perdi o amor à vida. Olhe para o meu corpo. Já não tenho senão ossos. Porque será que a gente muda? Diga-me: é p’ramor do velho que se não quer matar?

— É, está calada.

— Eu cá sou assim, que quer? Às vezes, quando não tenho com quem falar, ponho-me a falar sozinha.

Antigamente não me lembravam coisas que me vêm agora à ideia. Esta vida sempre é mais negra, não é?

— É.

— Pois é, eu bem digo e mais não conheci outra.

Sempre a gente nasce com cada sina! Olhe, quando eu estiver pra morrer, não me deixe ir pra o Hospital.

— Não fales...

— Porquê? Eu bem sei como estou. Dá-se-me bem!

A gente tem de morrer, não é? Então quanto mais depressa melhor...

Uma noite que os ladrões espancaram Sofia, a Mouca pôs-se a olhá-la como um cão ao dono. Por fim disse-lhe:

— Vamos ambas ao rio, quer? Eu não me importo de morrer. Mais vale acabar. E a menina? Que ando eu a fazer neste mundo? Se a menina tem medo da água, eu deito-me primeiro ao rio.

— Não, deixa! não te aflijas!...

— Eu, sim! bem m’importo!...

De noite muitas vezes tinha aflições, sufocada.

Agarrada a Sofia:

— Oh valha-me!...

No entanto falava de curar-se, quando tornasse o sol. Por ora tudo estava transido.

— Na primavera...

— Sim, na primavera.

— Vês a Árvore, vê-la? Assim que tiver flor, é mais quentinho...

Mas veio Março e depois Abril e que transformação! Quase nada restava da Mouca, escárnio de ladrões e de soldados. Até a voz se lhe sumira...

Dia soturno, de névoa, cinzento e húmido. Começo da noite. Fora, na rua, lama e gritos; dentro as mulheres acendem um candeeiro fumarento. Vai morrer a Mouca.

Limpam-lhe as prostitutas o suor da agonia e pé ante pé vêm os ladrões e os soldados para o redor da enxerga vê-la acabar. Moldado pelo lençol um corpo ressequido e no silêncio da espera ouve-se só a rala aflita, o estertor, a ânsia de quem quer ainda viva e que a morte estagna — mais perto! mais perto!...

O Velho, com a boca enorme some-se no escuro e de lá os seus olhos brilham; à cabeceira Sofia ajeita-lhe as repas curtas e húmidas. O lenço está ensopado de suor de aflição.

— Ajudai-a a morrer — diz uma das mulheres.

— Está a passar?

— Chiu! baixinho...

Chegam-se mais os ladrões e os soldados e curvam — se em volta da enxerga — o Pita, o Morto, os outros.

Nas feições cruéis, há espanto e terror.

— Inda fala?

— Chiu!...

Esperam. E a rala enrouquece, mais aguda, como se a morte fosse apertando — mais perto! mais perto!... A Mouca abre os olhos enormes na cara branca e imaterializada:

— Menina! menina, valha-me!...

— Estou ao pé de ti.

— Tenho frio, muito frio...

Juntam-se as caras dos ladrões e dos soldados, todos em roda — e pé ante pé também o Velho se chega para a cama. A Mouca abre os braços e dum lado o Morto, do outro Sofia, seguram-lhe as mãos.

— Aqui está uma manta — diz o Velho baixinho. E apresenta um farrapo de manta coçada.

— Chiu! já não precisa.

— É melhor deitá-la com a enxerga no chão, para acabar de penar — aconselha a patroa.

A Mouca respira aflita.

— Tenho frio... nas mãos, na cara...

Devagarinho, arrepanhando o lençol, rodeada de todos que a tinham maltratado, de todos os que se tinham rido dela, devagarinho se fina; a vida extingue-se-lhe como a última gota dum fio de água que acaba de correr.

Haviam ficado em volta imóveis.

Este ato de o espírito se libertar é de tal forma grande, o início do mistério, que até o Pita olhava estarrecido. Fora disse para os ladrões:

— A morte, rapazes, ensina. Não há lição mais formidável. É doloroso e no entanto pacifica. Ver morrer, enche de grandes ideais, filhos!...

Capítulo XXII
A filosofia do Gabiru

Oh descubro agora a torrente esplêndida que é a vida! É a emoção. Ela é o veio límpido onde as sedes se estacam. Liga os homens, prende-os — e o egoísmo afasta-os.

Todos os rios, como todas as vidas, vão desaguar ao grande atlântico de beleza. As criaturas humildes e simples têm uma existência como um fio corrente — água e lágrimas — mas sempre claro. A cólera, a ambição, os interesses turvam a vida, como a terra revolvida turva a água.

Amar os outros, sofrer pelos outros, viver para os outros, é tornar a existência simples, monótona e grande; é fazê-la parecida com as mantas grossas, duma única cor neutra, que agasalham os pobres.

O homem que tem emoção e que ama é sempre feliz: as coisas conhecem-no, as árvores são suas amigas.

Sente-se enternecido diante do mais ressequido calhau.

O que odeia, o ambicioso e o mau, passaram pela natureza como o homem na guerra: não viram nem ouviram. As coisas emudecem para eles. Nada lhe dizem, porque não sabem ouvir. Tu, que enternecido paraste diante dum sítio recolhido e simples, diante das desgraças alheias, tu, pobre, que tombaste na cova desprezado, roto, e a quem a terra recebe como a um amigo, tu que adormeceste no derradeiro sono quase consoladoramente, como morre tudo o que é simples, tu viveste... Comunicaste, pela piedade e pela emoção com a natureza inteira e o teu amor repartiste-o pelos mundos que rolam no infinito, por Deus, pelo homem, pela pedra.

Tu soubeste e pressentiste tudo.

O que é grande é sempre simples.

Desperta em ti a emoção para que possas dizer:

— Vivi!

Todo o homem que nasce deve ter um quinhão de terra — seu sustento e sua cova. O pão de cada dia deve granjeá-lo com o suor do seu rosto.

É singular a inconsciência com que o homem trata as coisas mais profundas da vida — e a gravidade com que discute as que são apenas aparências vás.

A desgraça é sempre boa — porque aproxima o homem dos desgraçados.

Tudo na vida se simplifica sendo a gente simples.

É com a folha que se deixa vogar na mansidão dum rio até que o oceano a traga.

Para se ser feliz na vida é preciso ser-se pobre.

Sentir-se que o pão que se come não é tirado a nenhuma boca, nem o lume que nos aquece roubado a alguma velhice friorenta.

Ser pobre, lavrar uma terra que nos dá o pão saboroso e negro e o tronco para o nosso lume!...

Quando se ama, a emoção sai de nós como duma fonte e a gente prende-se aos outros. Não se sente sozinha: faz parte da Vida, duma torrente de amor misteriosa e esplêndida. O amor torna-os irmãos.

O homem não faz senão complicar a vida, que em si é afinal bem simples.

As coisas desprezadas são as melhores da vida: a paz, as horas esquecidas, a água desnevada que se bebe, os minutos de silêncio em que se sente Deus connosco.

De que serve acumular ódios, ambições, riquezas?

Não é isto de mais para uma vida terrena?

Não saber nada senão amar — repartir emoção com os outros!

De rastros! de rastros! Ódio, ambição, gritos, tudo isso é nada! Toda a existência perdida a sonhar, a viver sozinho, absorto em coisas nulas, quando a vida é tão grande e tão simples e se reduz — a amar! Pelo amor conhece-se tudo, até o que os sábios ignoram. Olha para um mistério com amor, e ele desvenda-se logo; olha para um calhau com amor, que até nele encontras mil coisas imprevistas; chega-te ao homem, teu irmão, até ao mais degradado, com amor, que nele depararás com Deus.

Deus vive ao pé de ti, contigo, toca-lo a toda a hora. Que precisas para o sentir? Amor.

Vive uma vida simples, a vida de que os pobres se aproximam, com emoção e o teu pedaço de pão negro, olhando o prodigioso mistério, e serás feliz.

Lavra o teu campo, e, nas horas perdidas, olha, prende-te à abóbada do céu, ao homem, à montanha, à árvore, ao mar — e ouvirás Deus em ti, sentindo atravessar-te uma frescura mais viva do que a água das rochas.

Deus está muito perto de ti — e é por isso mesmo que não o vês. A dois palmos da secura passa muitas vezes um veio de água escondido. Basta cavar na crosta da terra, para que o chão gretado e pedregoso se transforme. Que torrente de emoção não vai atravessando os mundos, os homens, as folhas secas e os globos de oiro do céu!

O homem enredou-se de tal forma na ambição, no ódio, na guerra, que perdeu o sentido da vida — tão simples e tão larga — e que deixou de ver Deus, sempre presente ao seu lado.

Para o encontrar, precisa de voltar ao amor das coisas simples e grandes — ao amor dos seus irmãos, da natureza, e de abrir o seu coração a esse fluido misterioso.

A vida artificial é que transformou o homem. Da vida artificial é que nasceu o orgulho, é que nasceram a ambição, os erros, o crime — e até a piedade. Se todos vivêssemos da verdadeira existência — o homem seria feliz. Como se pode redimir tudo isto? Pregando o Amor.

Só o Amor nos pode ainda salvar.

Agora vejo! agora vejo! Que montão de infâmias!

Que montão de crimes! O homem trabalha desesperado, atrás do oiro, da ambição, da vaidade, do sonho vão, para quê? Para ser desgraçado. Um trabalho férreo e hercúleo — para gritar, e encontrar-se ao fim, a dois passos da cova, com inutilidades, carregado de dores e de opróbrios. Não hesitou em despedaçar, em calcar, em mentir — em busca do que ele julgava a felicidade, e que era apenas o erro. Não teve tempo para olhar a montanha, o mar, o céu — o espetáculo de Deus não o viu — porque corria atrás da felicidade. Não perdeu uma hora apanhando sol como um mendigo, tendo piedade de seus irmãos, dando mão aos desgraçados, porque vivia numa aflição, atrás do quê? Da felicidade. Não se sentiu a sós consigo, não se encontrou, nem sequer um dia da sua vida perdeu olhando-se cara a cara, ele e a sua alma, fechado com o seu coração. Porquê? Porque corria atrás da felicidade. Desprezou tudo, a vida, a respiração dos montes; riu-se do amor, da emoção — futilidades — porque feroz, incansável, negro como um mineiro, ele buscava, sem perder um minuto — a felicidade! Chegou ao termo da jornada, tendo amontoado oiro e pão, tirado a outras bocas, tendo feito gritar, blasfemar, contente o seu orgulho e a sua vaidade mas afinal profundamente desgraçado. Está a dois passos da cova. Interroga-se e não compreende. Então isto é que era a felicidade? De que me serve tudo isto? O desgraçado não reparou que a felicidade na vida estava exatamente no que ele tinha desdenhado!

Ama, ama a teus irmãos e vê-lo-ás transformados e cheios de beleza: mesmo nos mais secos irás encontrar coisas inesperadas; ama a natureza, os montes, as pedras — e verás que espetáculo sublime; ama, que sentirás a mão de Deus pousar sobre a tua cabeça.

Torna a vida simples e serás feliz. A tua vida não custará gritos; o teu pão não será furtado a bocas famintas. Por cada homem que amontoa oiro, há cem criaturas morrendo no desespero e na aflição.

Capítulo XXIII
A Árvore

O Morto tinha um feitio singular. Uma força desconhecida — dessa corrente a que estamos sujeitos toda a vida — impelia-o para o mal. A sua maneira de falar era curiosa, como a de todas as pessoas que vivem sós e a quem o tempo sobra para refletir.

— Quem és tu? — disse-lhe o Gabiru.

— Sou filho do crime. Que te importa o meu nome?

O meu nome ao certo ninguém o saberá. Não tenho família.

— Quem te criou?

— Os ladrões.

— Se não tens onde dormir, deita-te lá em cima.

E enquanto o ladrão dormia aos solavancos, acordando de estacão, para de novo mergulhar num sono profundo, o Gabiru cismava, olhando-o.

Às vezes o ladrão tornava e o filósofo repartia com ele o seu pão. Depois dizia-lhe:

— Dorme.

Mas nessa noite o Morto, mais agitado, não quis dormir. Sentados à beira um do outro falam durante largo tempo.

— Não sei porquê, este tempo aflige — começa o Morto. — Não devia haver este tempo.

— Qual?

— Este, de primavera. Até na cadeia, quando numa noite assim o luar consegue entrar pelos buracos, os ladrões acordam sobressaltados. Tenho visto assassinos abalados. Havia duma vez um velho, que matou uma criança por nada, para se rir, e que numa noite destas encostou a boca às grades para respirar com sofreguidão e desatou a cantar. Este tempo tira a força.

— Escuta. Não ouves nada?

— Nada... Durante o tempo que persisti na cadeia conheci cada um... Os que matam inda são os que têm melhor coração.

— Tu para que roubas?

— Roubo porque tenho de roubar. É o meu fado.

Cada um tem o seu. Tudo o que a gente faz está escrito no livro do destino. Eu bem sei que inda hei de fazer pior quando soar a hora...

— Que hora?

— A minha hora. Todos neste mundo têm uma em que cumprem aquilo para que foram criados. Cada qual nasce para o que nasce. Há-os, por exemplo, que chegada a sua hora matam. Pensas que é para roubar? Matam uma criança que nunca lhes fez mal.

— De que serve fazer mal?

— Em primeiro lugar é fazer mal, e quando a gente nasce para fazer mal, é sempre bom fazê-lo. Tenho horas em que tudo em mim — tudo! — me prega que faça mal e as minhas mãos procuram logo quem matar. Às vezes sonho que mato. É sinal que a minha hora ainda não soou.

— E Deus?

— Deus foi que me criou, Deus não se importa.

Que tenho eu que fazer neste mundo? Só mal. É porque Deus me criou para o mal.

— Resiste.

— Quando a gente é criada para isto, não há nada que nos impeça... Uma criança...

— Antes viver com um sonho, ignorando tudo.

— Mas viver!... Viver com toda a força! Tu não vives. Morrer sem ter vivido!... Que sabes tu da fome? E da desgraça? Que sabes tu de ser perseguido e de fugir?

E do minuto em que se mata?... Que sabes tu de seres tu? Há instantes em que se vive uma vida inteira. Para se viver é preciso cumprir-se um fado, com todo o nosso ser, é preciso a gente sentir-se só contra todos e no entanto prosseguir o seu destino... Andar inda que esmague. Para onde? IC para o mal? Que importa!...

— Mas o mal...

— Que sabes tu do mal?

— Nada.

— O mal sabe... Ter as mãos ensanguentadas e esmigalhar nas mãos!... Fugir de noite com os pés nas pedras, perseguido, sem poder respirar; encher depois o peito, com o coração a estalar escondido num canto negro ou estender-se a gente no chão e sentir na boca o travor da terra!... Não respirar e ter a noite por amiga!... A gente poder fazer chorar! Eu ter entre as mãos uma vida e vê-la finar-se!...

— E eu que tinha pena de ti!...

O Gabiru reflete. A noite é espantosa. Toda a lua se desfaz em luar e, no silêncio brando, vêem-se da trapeira os montes, o mar e as árvores, com formas de sonho.

— Pobre de ti! — diz por fim o filósofo. — Tu és a terra, tu és a terra a falar... Tu és só terra. Eu não vivi?

Tu és como a forja apagada e eu não, eu não, eu ardo!...

Olha! Olha!...

Mostrava-lhe os montes, o rio, os pinheiros transformados ao luar.

— Não, não quero ver. Isto tira a força à gente.

— Olha! olha!

Mostrava-lhe, esguio, e parecendo um D. Quixote banhado de luar, um sonho que o outro não podia ver...

— Não quero... Ouve. Se uma criança tem de vir a ser como as mulheres da viela não era melhor morrer?

— Talvez.

— Não é isso que te pergunto. Não era melhor morrer?

— Não sei.

O ladrão ficou um minuto a olhá-lo calado, e depois, de repente, abalou.

Foi esta noite! foi esta noite! Há dias em que eu sinto como uma torrente impetuosa que vem do outro lado do Hospital. As pedras estremecem impelidas. Há como uma ligação entre a Árvore e aquelas pedras. Os seus esgalhos esbranquiçados e esguios cresceram mais e ontem à tarde eu vi que a Árvore já não era a mesma.

Foi quando, como agora acontece desde Março, o sol lhe deixou poeira de oiro nos galhos. Vai-se o sol embora e ainda — vou jurá-lo — lhe fica sol nos ramos. Ontem à tarde parecia transformada, diríeis haver nela não sei o que de extraordinário, de irreal e de estranho — nessa Árvore só dor. Pus-me a vê-la tronco por tronco, depois as pernadas e os raminhos e enfim descobri perdido, quase sumido, um botão tão miúdo, tão ténue... Qualquer sopro do vento levá-lo-ia para sempre.

A noite estremecia despedaçada. Uma névoa viva, torrente luminosa, arrastando consigo no alvorecer o primeiro hálito dos montes e das águas acordadas, humedecia as arestas dos muros, o granito da cidade ainda em bloco, meia sumida na noite. O Pita sentiu que alguma coisa de extraordinário se passava nessa madrugada de Abril: um jorro de vida brotara, uma aparição, um sonho realizara-se tornado em matéria. A própria luz dir-se-ia enternecida, estremecendo ao tocar na Árvore. Envolvia um fluido, um rastro de emoção.

Erguida, enorme, transformada em flor a dor que as suas raízes tinham bebido. Com um grito o Pita viu o Gabiru pendurado num ramo.

Namorara sempre, depois do escárnio da Mouca, aquela Árvore, cismando num encontro etéreo para depois da cova. A tísica, nos últimos dias, quando a morte a tocara, não tirava dos troncos despidos o olhar absorto.

— Aquela Árvore — dizia — aquela Árvore...

Não sei se repararam... As criaturas mesmo antes da agonia pertencem mais a um outro mundo do que à terra. A matéria está já toda embebida de mistério, há mais luz do que noite... As coisas que pertencem ao corpo emudecem e põem-se a falar dentro em nós a poeira de astros de que é feita a alma.

— A Árvore! A Árvore!... — dizia ela para Sofia.

— Donde nasce aquilo — olhe — que a faz tremer?

Engrossa e de noite irradia luz... Lembra-se do ano passado que pra ali veio um passarito morar? E da sua voz? Parecia água a cair...

Quando para sempre a levaram o Gabiru mergulhou na dor. Isolou-se mais. Monologava e os olhos esqueciam-se-lhe nos sítios que ela amara. As noites tinham já esse encanto que alheia, cheias de gritos, de vida no escuro, de palores esquecidos...

Altas horas à janela, todo o céu pontilhado de estrelas, ouviu soluços na quietude da noite. Caía um luar enorme e a treva tácita parecia esperar escutando.

Só muito ao longe, no silêncio que lhe pareceu presságio, dir-se-ia que uma nascente deixara correr um fio de água — só um fio... Ou talvez fosse luar que corresse... Diríeis lágrimas. Pôs-se a olhar inquieto. A Árvore, mais esguia ao palor do luar, parecia transformada. Acenavam-lhe os ramos — e que voz era aquela, fina e meiga, que o chamava?... Ou seria água nascendo ou um fio de luar a correr?

Desceu três a três os degraus e ei-lo no saguão.

Vestira o luar a Árvore e sob a magia da noite a eclosão fizera-se.

Ao luar, na luz indecisa da noite, lhe pareceu a Árvore como um branco fantasma a fugir e a chamá-lo.

Baixaram-se os seus troncos para o tomar e ouvindo aquela voz amiga, desfaleceu apertado, morto, levado pelos ramos...

Pela primeira vez a Árvore de saguão deitara flor, mas que flor! que simulacro de flor e à custa de que sofrimento! Cada flor era um grito — cada flor da Árvore imensa que cobria a pedra e o Hospital. Eles dois enchiam o mundo — dum lado a Árvore, do outro o Hospital.

Capítulo XXIV
O ladrão e a filha

A filha da Asilada e do Morto criou-se na viela entre gritos das mulheres e chufas de soldados e ladrões.

Tinha quatro anos e dormia pelos cantos ou nos braços da Gorda e da Mouca. Assentava-a nas pernas o Velho que tinha sido cavador e que abria para ela a enorme boca desdentada. Fazia-lhe festas a patroa. Enchiam-na de beijos as mulheres num frenesi e dias inteiros passavam por ela sem a verem. Esqueciam-na.

Adormecia a chorar nas camas ou nos degraus das portas.

Só a mãe lhe fugia sempre:

— Não a posso ver!...

Mas ela crescia. Crescia ao acaso, naquele sítio de alucinação onde os seres se transformam como em sonho, em figuras de verdade que só a certas horas vêm à superfície, irrompendo do mundo de dor e de tragédia a que pertencemos todos...

E o Morto perguntava à amante:

— Porque não podes ver o anjinho?

— Sei lá! Não a posso ver...

— És pior que as cabras!

E batia-lhe. Ela calava-se com um olho fixo de maldade e de espanto.

— Escusas de me bater, não a posso ver. Tomei-lhe raiva. Deixa-me!

Agasalhava-a o ladrão com velhos trapos. Encostava — a ao peito, e nesse inverno dera-lhe um casaco velho para a aquecer.

— O tropeço não morre? — perguntava a Asilada, talvez de propósito para o ladrão lhe bater.

O tropeço não morria. Punha-se a olhar para o pai, a agarrar-se-lhe às pernas, a querer segui-lo quando ele partia, e lá ia crescendo na viela negra entre gritos e injúrias e o cantar triste das mulheres.

— Mas porque é que bates na pequena? — diziam-lhe as outras.

— Não sei! não sei! — gritava.

No começo do inverno a Asilada foi para o hospital e antes de a levarem abraçou-se à filha a chorar num desespero. Foi difícil arrancar-lha dos braços.

Tomaram conta dela as mulheres. Dormia com elas ou com o ladrão. Uma manhã disseram:

— A tua amante lá vai. Enterrou-se ontem.

E o Morto ficou horas sozinho a cismar. Acordaram — no risos fora. Levantou a cortina e foi direito ao velho cavador que tinha a pequena nos joelhos. Calaram-se todos em roda, e ele tirou-lha de repelão dos braços, encarando com o outro que se riu com a grande boca de fera desdentada. O Morto saiu com ela e só voltou à tarde, tornando a entregá-la à Gorda.

— Guarda-ma até à noite.

À noite chamou a pequena e teve-a muito tempo apertada contra si. Talvez nesse momento compreendesse o horror da Asilada pela filha e a sua ternura antes de a levarem de vez para o hospital — talvez visse o Velho com a criança nos braços e aquela boca escancarada lhe parecesse monstruosa.

— Vem comigo.

— Onde vamos, pai? Passear?

— Passear.

A pequena riu-se.

— Agora?

— Agora.

E pegando-lhe pela mãozinha levou-a até ao rio, exatamente no sítio onde encontrara pela primeira vez a Asilada. Meteu-se dentro dum barco, desamarrou-o e pôs-se a remar.

— Onde vamos, pai?

— Tu verás. Dorme.

O mesmo horror inconsciente que lhe tinha a mãe, sentia-o agora o ladrão. Não raciocinava. Nem o ódio era pela viela que esperava a criança, nem por a ver nas mãos do cavador brutal ou do soldado vesgo, que a olhava calado com ferocidade. Doía-lhe qualquer coisa, que o obrigara a tomar uma resolução para poder respirar.

Aquilo não podia existir ao seu lado — tinha de desaparecer. Isto sentia-o profundamente até ao âmago, como a mãe o sentira sem o saber explicar. Na alma do ladrão, ao pegar essa noite na criança, havia ao mesmo tempo ferocidade e horror. Era necessário matá-la, absolutamente necessário.

— Agora.

Mas a criança olhou para ele e riu-se — e ele teve-lhe medo.

— Dorme!

A pequena pôs-se a balbuciar — ó pai! ó pai!... — a dizer as palavras desconexas e extraordinárias que dizem as crianças, e as obscenidades que ouvia ao Velho na viela quando lhe pegava ao colo. E o ladrão estremeceu abalado até às profundidades da vida.

— O pai! ó pai! — gritou ela de repente — o que é aquilo lá em cima?

E a pequena, que nunca tinha visto estrelas na viela trágica, apontou deslumbrada o céu.

— Estrelas.

— Ah estrelas! estrelas!... — E o monólogo infantil seguiu com estas palavras e encanto — com as palavras tão repetidas que têm sempre novidade e frescura nos bicos cor-de-rosa, como se a vida pela primeira vez acordasse sempre que uma criança fala, e palavras terríveis, que pertencem à vida trágica e que ela inconscientemente misturava às outras.

Por fim adormeceu na caverna do barco olhando para o céu. Mas a dormir metia-lhe tanto medo como acordada... Estendeu as mãos devagarinho e atou-lhe à cinta uma corda com a poita. A pequena mexeu, acordou, sorriu, abriu a boca para dizer pai, e caiu logo no sono inocente. E o ladrão ficou muito tempo quieto a olhar para ela.

A criança não podia continuar a viver. Diante dos olhos tinha sempre a boca desdentada do Velho e as figuras das mulheres dizendo obscenidades. Sabia que destino a esperava. A criança era o mal. Ele só teria sossego na terra quando a atirasse ao rio e a visse descer lá para o fundo, para muito fundo, longe da vida de dor e de tragédia.

Pela primeira vez sentia que cometera um crime contra uma coisa imensa e extraordinária, contra uma coisa imensa e invisível — sentia com horror que envenenara a vida. Era necessário matá-la... E ao mesmo tempo desabava sobre ele outro espanto sem existência real... Ainda tentou avançar sem ruído, contendo a respiração, para deitar as unhas de repente e afogá-la.

Não pôde... Tinha uma missão a cumprir e não conseguia executá-la.

— Terei eu medo? terei eu medo?

E apertava uma contra a outra as mãos frias e enormes.

Esbarrava contra um muro vivo de ternura. A sua alma torcia-se na nudez imensa da noite, esmagado entre duas forças contraditórias que lhe pesavam como montanhas. Olhou para o céu — para as estrelas inúteis.

A criança dormia no fundo do barco. E aquelas duas forças quase as via avançar sobre ele cada vez maiores.

O drama passava-se no silêncio da noite e sem poder separar a ternura do ato feroz e necessário que meditara.

A sua concentração atingia o desespero.

Por fim deitou-lhe as mãos e ela acordou:

— Pai! pai!

E imaginando que ia brincar encostou-se à cabeça curvada sobre ela e exclamou:

— As estrelas! as estrelas!... O Rosa! ó Rosa! ó Rosa!... Pai, tu sim tu és meu amigo... Que lindo lá em cima!... Pai!...

....................................................................................................................

Pela boca inocente e pura fala agora o mundo a que pertencemos todos, nós e os ladrões das estradas.

Ele detém-se esmagado. Já não pode ir até ao fim.

Imobilizado ouve-a, com horror, e sente-lhe ao mesmo tempo a mãozinha nas mãos enormes. Imobilizado de dor o ladrão nem se atreve a falar.

Aquilo que julgava fácil era impossível. Matá-la era melhor, mas não podia. Tinha de aceitar o destino: o soldado vesgo, o Velho que a esperava com a alegria duma fera que sente a presa próxima e escancara as fauces temerosas. Soltou devagarinho a corda, dirigiu o barco para terra e, deitando a correr desvairado, com a criança nos braços, foi entregá-la à viela.

Capítulo XXV
Natal dos pobres

Natal...

Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para lá as árvores despidas não bolem. A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há entanto um grande rio envolto que nunca cessa de correr...

Longe pelos caminhos, através de pinheirais cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia pelos ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e léguas. As suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem pão, suor de aflições, desamparos, maus tratos...

Os cavadores deixaram os arados mortos nos campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O vinho de hoje conforta, como as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje aquece como o amor de nossas mães.

Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e continua, andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai. Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os seus meninos, matando saudades. Quase não comem e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem:

— É hoje o maior dia do ano...

Na lareira arde um canhoto. Cai o nevão. A cozinha é negra, de telha vá, é negro o frio, mas as almas sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as estrelas e uma pedra serve de lar. Ao estalido das pinhas, abafadas na cinza, repartem um pão que é o suor do seu rosto, bebem o vinho aquecido em árvores que as suas mãos cortaram...

Sentados ao lume não falam. As brasas vão-se extinguindo como um poente, ou como uma alma que vai deixar-nos. A Morte passa. No buraco do telhado a estrela reluz, o nevão cai com um ruído das flores desfolhadas, e cada um cisma em alguma coisa de indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora da vida, na mãe, num filho ausente, naquela morta que passou seus dias a sacrificar-se por nós...

— O lume apaga-se...

— Deitai-lhe canhotos.

O lume apaga-se e as sombras da noite, em revoadas, vêm escutar-nos atentas.

Os pobres são como os rios. Estancam a sede da terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores; acarretam; moem o pão nos moinhos. Ei-la a vida da terra. Todas as catedrais se construíram da sua dor; sem eles a vida pararia.

Natal dos pobres! natal dos pobres!... Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o seu pão; espezinhados dão-nos das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sabe a aflição!

Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma, abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente, no filho ausente... Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que o nevão.

As lágrimas que se choram e se não veem são as melhores: caem sobre a alma.

Sofia sobe as escadas com uma caneca de vinho quente, para repartir com o Gebo. Na sua fisionomia há um cansaço enorme.

A chorar, misturando-lhe lágrimas, o velho, mais gordo e todo branco, bebe o azedo vinho quente das prostitutas. Depois abraçados soluçam na trapeira fria.

Fora não se ouve rumor: as coisas ingeridas escutam.

Põem-se a cismar na mãe que descansa na terra encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não protestam, não têm forças para gritar. Baixinho o velho Gebo e a filha choram aquela que a terra primeiro tragou.

— Se o Senhor também nos levasse...

E Sofia bebendo do mesmo copo:

— Tenha paciência, tenha paciência...

— Se o Senhor nos levasse juntos, na mesma hora...

Cuido que não tinha tanto frio.

— Aí tem pão.

— Sabes? Eu tenho medo de morrer. Se morresse contigo, minha filha, não tinha tanto medo.

— A mãe lá nos espera. Na cova acabam-se as precisões e as lágrimas...

— Tudo se acaba na cova. Chegada a nossa hora, acaba-se também a desgraça.

— Aqui tem o vinho.

Natal dos pobres, noite de comunhão, noite de lágrimas e saudades! Não é chuva que cai sem ruído, são lágrimas. O Gebo abre a janela e põe-se a falar para a escuridão com palavras que a noite escuta, com palavras que a noite leva.

Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres.

Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho quente e cismam... Ceia de natal! Ceia de natal!... Até as prostitutas se querem lembrar... Moídas de pancadas, têm más palavras, gritos, e um sorriso humilde. Fazem-se pequeninas para que lhes perdoem uma vida infame.

Falam! falam!... Parece que a mesma primavera negra fez dar emoção a estas criaturas exploradas e servidas. Lembram-se da sua vida, sempre lágrimas, risos sem piedade... Uma começa:

— Ninguém canta?

E logo outra, como se as palavras lhe saíssem de golfão:

— Eu cá foi por fome que me desfrutaram. Ninguém queria saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos pés.

— Eu não sei como foi...

— E eu então — continua — foi por fome. O pai estava escarangado e a minha madrasta era tão má, que, por eu me demorar num recado, partiu-me um braço.

— Pois eu foi assim de repente... — diz outra.

— Ia pela rua fora. Vinha da fábrica, começou a chover e uma lama!... Tinha frio e um homem pôs-se a falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu nem sei como aquilo foi... E a falar, a falar, até me doía o coração! E nunca mais o vi. Se o vir acho que nem o conheço.

— Enganam e nunca mais querem saber.

— A mim minha mãe bem me pregava mas a gente que há de fazer?

— Ontem os soldados puseram-me o corpo negro — diz uma.

E mostra a triste carne magoada, os seios murchos e com nódoas. No ombro os ossos furam-lhe a pele.

— Quando eu morrer... oh quando eu morrer!...

— Tola!

— Que tem? Tenho ali a roupa apartada.

— A mim, enganaram-me, levaram-me... Eu não sabia nada. Depois comecei a servir. Enganavam-me e punham-me fora... Depois não tinha mais para onde ir...

— Eu cá tive um filho...

Uma que estava calada soluçou no escuro. E como todas se voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os cabelos.

— Eu tive um filho e pus-me a criá-lo.

Depois disso o meu amigo nunca mais quis saber.

Quando eu o procurava ria-se. Mostrava-lhe o inocente e ele punha-se a rir. — Mulheres não faltam, dizia-me. Vai-te! — E a gente fica feia. Vai um dia e disse-me: — Se cá tornas chamo a polícia.

— Eu chorei até não ter mais lágrimas e acabou-se tudo. São todos o mesmo. Noutro dia vi-o, mas ele fingiu que não me conheceu.

— E o teu filho era bonito?

— Era um anjinho do céu. Tanto chorei que secou-se-me o leite de chorar. A gente sempre e mais tola!...

Pôs-se muito chupadinho e morreu.

— A Maria já deitou um à roda.

— Eu cá se tivesse um filhinho acho que morria por ele. Não tinha coração para o dar a criar.

— A gente não podemos ter filhos.

— Eu cá era uma inocente. Até me dá riso! Tinha treze anos e foi logo ao entrar para a fábrica. O mestre foi quem me desfrutou. Agarrou-me, mas eu não sabia e pus-me a chorar. — Cala-te! se dizes, vais para a rua! — Abandonou-me, outros vieram... A gente há de cumprir o seu fado.

— Eu cá fui um miminho. Meu pai tinha de seu...

Depois tudo esqueci, porque senão a gente morria. Meu pai era muito meu amigo. Era preciso não ter coração para o enganar. Nem ele podia supor mal de mim, nem do outro que entrava na nossa casa. Meu pai era também muito amigo dele e tinha-lhe valido sempre. Ainda me lembro, quando meu pai comigo no colo me dizia: — Tu és o meu coraçãozinho... — Eu sempre tive um colo!

Olhai: embalava-me como às crianças. — Falta-te a tua mãe, mas eu sou a tua mãe, queres? — Era uma dor do coração enganá-lo e nós enganámo-lo ambos. E eu bem sabia que ele era casado, mas mentia-me...

— Porque será que os homens mentem sempre?

— Mentia-me sempre, e eu era inocente. Mentiu-me e mentia a meu pai. O pior é que um dia fiquei grávida. Começou o meu castigo. — Vou-lhe dizer tudo.

— Diz — disse ele. Mata-lo. Se queres diz... — Eu calei-me.

— E agora? — Agora... — Eu já lhe não queria, acho mesmo que nunca lhe quis deveras. Foi uma desgraça.

Já estava escrito que fosse desgraçada, acabou-se!...

Depois não podia esconder o meu erro. Só meu pai não reparava... E ele que me imaginava uma inocente!...

Esperai... — E agora? agora?... — perguntei-lhe. Então arranjei com que meu pai me deixasse ir com ele e a mulher para uma quinta. Se vós vísseis! A pobre da mulher! Batia-lhe sempre, tratava-a pior que a um cão.

— Cala-te! e ela calava-se, a pobre. — Fala! — e ela falava.

— O estupor, tu não te calarás! — Ela tinha os cabelos todos brancos e vai eu um dia perguntei-lhe quantos anos tinha. — Trinta — respondeu-me, e calou-se. Fiquei passada. O homem diante dela dava-me beijos para a ver chorar. Dizia-lhe: — Vou dormir com ela, ouves, velha? — E dormia comigo. A senhora não dizia palavra.

Chorava e punha em mim uns olhos tão tristes, que faziam aflição. Um dia que ficámos sozinhas, ela disse-me:

— A menina há de ser uma infeliz. — Eu chorei; e ela com a mão nos meus cabelos, a fazer-me festas! — Coitada! coitada, que sorte a sua tão negra!... Ainda eu...

— Porque não o deixa? — perguntei-lhe. — Já me tinha deitado ao rio se não fossem os meus filhos.

— Ele sempre há desgraças! Às vezes mais vale ser mulher da vida.

— Esperai pelo resto. Tive as dores uma noite no verão, em a gosto, e a pobre da senhora é que me tratou.

Ele levou-me logo o filho. Na outra sala ouvi gritos. Vai e atirei-me pela cama fora, sem saber o que fazia. — Onde está o meu filho? — Fui mesmo de rastos e pus-me à porta a escutar. Eles berravam. — Se falas esgano-te! — dizia o malvado à mulher. — Mata-me! — tornava ela. — Tu queres a minha desgraça? Estorcego-te! — Depois ouvi um grande grito e fiquei como morta. — O nosso filho? o meu filho? — Nasceu morto. — A mulher a um canto chorou. Chorou sempre depois.

— Tinha-o matado, o malvado?...

— Tinha. Afogou-o na latrina. Depois veio a polícia.

Esperai... A criada ouvira os gritos. Sabe-se sempre tudo, o diabo tapa dum lado e descobre do outro. Ele fugiu para o Brasil, eu fui presa, e meu pai diante duma ingratidão tão negra — quereis crer? — estalou-lhe o coração. Depois... depois... A gente quando nasce já tem a sua sina escrita.

— E a ti?... Não falas? — perguntam a uma sumida no escuro.

— A mim enganaram-me. Foi há tanto tempo que já me não lembra. Tudo perdi.

— E a tua família?

— A gente não tem família.

Na noite, a um canto do Hospital o velho banco de tábuas puídas, dá-lhe também para cismar. A ventania parou. Duma fresta tomba luar. A treva amontoa-se ao fundo, e, para além, nos corredores abobadados, arde um lampião. Direis que o negrume remexe: pedaços de escuridão destacam-se, escoam-se sem ruído pelas muralhas húmidas e espessas. Mais para o fundo há como um abismo, vala comum de treva empastada. Os gritos redobram; depois, por momentos o silêncio sufoca, como o dum sepulcro.

— Se é luar que cai daquela fresta... — cuida o banco.

— Se fosse luar!

Pela escada vê-se a enfermaria onde os lampiões em fila dão uma claridade triste, que mostra os corpos moldados em branco, caídos nos leitos: parece uma necrópole subterrânea e imensa.

— Se fosse luar... — Há que tempos que não sinto o luar. Era como um ruído branco que me envolvia outrora na floresta. Neva às vezes luar. E havia ainda outras vozes... Sempre se sonha, quando certas noites nascem!

Era diferente... Havia rumor nas folhas e o vento dizia aos ramos histórias acontecidas noutros montes. Há épocas em que o vento traz noivados, ais de sapos, frangalhos arrancados às flores... Se aquela poeira fosse luar... E se o luar se pusesse a correr sobre mim, aquecendo — me como outrora, quando em mim subia não sei o quê de misterioso e forte?

Redobram os gemidos, os estertores, os gritos. Os últimos lampiões apagam-se um a um, como se alguém lhe soprasse. É a Morte seguindo o seu caminho. Sombras esvoaçam. E a cova, negra, toma corpo, vive, mais calada, maior, vala infinita, a que uma luzinha dá alma.

E o banco cisma:

— Há que tempos que não sinto em mim a luz da manhã, que traz consigo a vida de tudo o que existe, dos rios, das outras árvores, nem o sol a crescer em vagas de oiro, nem a água verde, melancólica, e tão mansa entre os choupos que parece ir vogando já morta... Sinto-me transido... Transido? Isto é corno fogo, mas trespassa — me de frio. E não há nevão, mas ouço sempre gritos, ais, dores... Oh se fosse luar!... Destas enfermarias corre também um sonho parecido com luar... Será uma fonte?...

As fontes! nem te lembres das fontes!... Aqui parece que as minhas fibras mergulham num mar revolvido, que eu ignoro, mas que é feito de gritos.

Baixo a pedra começa também a lembrar-se e àquela hora perdida da noite toda a alma inconsciente do Hospital estremece. Quer recordar, palpita e logo esquece... Os sonhos dos doentes, dos pobres, dos tristes, materializam-se e são como nuvens: são de fogo, são de luar. Sombras aos bandos dissolvem-se, para outra vez se criarem.

— Acho que sempre é luar... E quando havia sol?

Torrentes corriam pelo meu tronco, inundavam a minha roupa cascosa e em volta numa poeira azul andava um turbilhão de bichos. Outras árvores flutuavam na mesma poalha e as suas folhas ou eram de sol ou todas de prata.

Longe — e que encanto aquela companhia sempre presente e amiga! — o fio do rio chalrava. Folhas caíam e iam devagarinho viajar sobre a água verde. Para onde?...

Debaixo de mim, até ao mais fundo das minhas raízes quantas vidas protegi e defendi!... As minhas raízes tocavam na vida!... Às vezes caia um pé de água, mas depois vinham sempre teias de sol, fios de sol, para me enredar — e o sol traz consigo um cheiro a terra e renovo que consola, o hálito dos montes e dos pinheiros meus amigos.

Nas temporadas fúnebres em que a água cai a golfões, a gente concentra-se e fica meio adormecida.

Os montes envolvem-se em nuvens, os bichos na terra tremem de frio sob as raízes e as folhas secas estalam e gemem com saudades ao deixarem-nos. Se por instantes se descerra a névoa, os montes são mendigos, com um grande manto remendado. Ao fim da tarde levanta-se dos campos um lindo luar azulado que sobe e se dispersa.

É a névoa. Baba de oiro luz na água e os choupos são sombras. Ao longe havia um biombo verde de pinheiros, depois montes, e depois poentes doirados... Porque é que me ponho a pensar e a cismar? Há tanto tempo que dormia! As minhas fibras esta noite estremecem. Há de ser do luar... Oh se ainda houvesse luar!

As mulheres calaram-se. Não há ruído. Elas próprias sonham. Em torno da mesa, na cozinha saqueada, bebem sem palavra o vinho quente. Algumas pensam decerto num lar e bebem as lágrimas que caem no vinho e o gelam.

— A esta hora a minha mãezinha há de por força pensar em mim... — começa uma.

— E tu porque não foste consoar com ela?

— Punham-me fora! queriam-me lá!... Meu pai, meus irmãos...

— Em minha casa faz-se uma consoada muito grande. Assam-se pinhas no lar, e minhas irmãs pequeninas... oh minhas irmãs pequeninas!...

E sufocada desata de repente a chorar. As outras não se riem como de costume. Só uma, sentindo que iam todas chorar, canta:

Se vires a mulher perdida...

— Raparigas, é o fado... De que serve agora chorar?

Ninguém foge ao seu fado.

— À noite a minha mãe aquecia vinho e dava-mo na cama. Sempre a gente é criada para uma vida! Quem adivinha?

— Cala-te!

— Eu era o miminho de todos, eu...

— Só eu nunca tive mãe, de mim ninguém se importa! Acabou-se! Cala-te! cala-te!...

Na escuridão as cinzas que restam num lar fazem tristeza e saudade. Brilham, esmorecem, vão-se apagar: são vidas que se extinguem, a alma da treva que em redor sufoca. Assim o Prédio ao abandono, sob a enxurrada, parecia cismar, como um rescaldo coberto de cinzas.

Parara trágico defronte do Hospital, e cansado, tal como um pobre ao fim da vida, contempla o seu destino.

Natal dos pobres! Natal amargo dos que não têm pão e se juntam friorentos em torno dum lume que não aquece; natal dos seres que a desgraça usou... O vinho enregela, o pão é duro, mas resta ainda este lume, que jamais se apaga: — Amanhã! amanhã!...

Que poesia tão triste não vai caindo como um choro sobre aquelas almas de misérrimos, de gebos, de prostitutas, de desgraçados!

Numa trapeira o gato-pingado quer dizer: — Amote!

— mas foi sempre tão nu que não sabe exprimir o que sente.

Na alma daquela criatura humilde, despida e escarnecida, que tinha medo de sonhar e até de chorar, fizera-se um clarão. Tal o espanto enternecido duma pedra a que uma raiz se apega e que a olha deitar flor na primeira primavera. — Fui eu, apesar da minha secura, pensa o calhau, que a trouxe no ventre.

Sem falar, bebem juntos, ele e a pobre, o mesmo vinho. Ele diz:

— Ambos somos desgraçados e sozinhos.

O vinho que havia aquecido dá-lho com um pedaço de pão. Ela olha-o, tendo sempre crescido por acaso e piedade, rota e triste. Havia pois alguém que a amasse?...

— Bebe.

— É tão bom a gente estar junta.

— Não se tem frio.

— Esta noite, sabes?... Lembro-me de minha mãe...

Porque seria que ela me enjeitou?

Fora choram. Ela ergue-se e vê no corredor uma rapariguinha que a mãe pôs fora da porta e que chora e pensa.

— E se eu me deitasse a afogar?

Dá-lhe do seu pão, reparte do seu vinho e, mísera, rota, ressequida, diz, pondo-lhe a mão na cabeça:

— Deus te crie para boa sorte...

Na terra só os pobres sabem ser desgraçados.

Meia-noite! meia-noite!... Para que tudo se crie, para que o pó se transforme em vida, que é necessário?

Torrentes de chuva, oceanos de água. Eis a vida... Para que do que é matéria algo de radioso irrompa, que é preciso? Um atlântico de lágrimas.

Da matéria tem nascido à custa de gritos, de fibras torcidas, o imorredoiro espírito. Através das idades ele se criou, através da dor veio surgindo. O mundo espiritual é já hoje mais vasto que o mundo material. A dor é a primavera da vida. Para se entrar na vida ou para se entrar na morte há sempre gritos. A dor ara o céu cheio de estrelas e os seres humildes.

Que se cria de tudo isto? que é que se alimenta no infinito? Destes pobres espezinhados, revolvidos, nascem as coisas eternas — húmus, amálgama, protoplasma, espírito lácteo, com que se constroem os mundos. Na vala comum os seus corpos, cansados de sofrer, são a vida da terra: as arvores, o pão, as formas, a seiva esplendente. No infinito é da sua dor que se sustenta Deus.

CAPÍTULO XXVI
Aí têm os senhores a natureza!

Nessa madrugada o Pita arrastou o Gabiru por um esgoto que do prédio ia desaguar ao outro lado do Hospital e de que só ele sabia a existência. As paredes arrombara — as donde a onde a raiz torcida da árvore.

— Anda! anda! Estas raízes são mais duras que a pedra. Nada lhes resiste, nem o granito. A árvore há de acabar por nos tragar a todos.

Tinha chovido na véspera e era ainda noite quando saíram do esgoto. Abala-os logo uma lufada de ar vivo, deste ar que é como a água da rocha, que apetece sempre beber e que traz consigo existências de árvores, cheinho de emoção. Param. Uma brancura, nebulosa na cova onde se criam mundos, ainda erra esparsa. No céu brilham estrelas e sente-se sobre as terras lavradias o nevoeiro espesso, que das árvores tomba em gotas grossas como chuva de verão. Os troncos além são espetros e outros, mais longe, de todo desaparecem. Ao norte luz uma estrela enorme. Sobre o monte abre-se um rasgão de claridade.. Eis o sol fraco, escorrendo por entre troncos, misturado de branco e sem calor, tal qual luar. Nos regos do arado correm rolos de névoa e a verdura da erva, na manhãzinha, é imaterial, como se fosse a respiração da terra. As aves, nas moutas, começam o seu dia cantando.

— Que sentes? — pergunta o Pita ao Gabiru.

— Espera! espera! — diz o outro entontecido.

— Ouço gritos e só vejo uma brancura e gestos...

Mas o que eu ouço! que sem-número de vozes, de palavras precipitadas!

— Vês árvores?

— Só vejo um clarão. ?S como um relâmpago, ofusca-me! Mas o que eu ouço! Quantos gritos, que amálgama de gritos! Sei agora que existem árvores porque ouço o seu ruído e a sua voz...

— Procedamos com método. Eis aí a terra, aí a tens a teus pés. Aí tens um charco.

Tudo já estava cheio de sol.

— Isto negro e isto de oiro? — pergunta o Gabiru.

— Sim. Revolve isso negro, inerte e no entanto vivo.

Afunda as mãos. Aí nas tuas mãos, nesse pedaço de lama, tens tudo, partículas de árvores e de sonho, realidade e emoção...

— Isto é então...

— Um turbilhão — afiança gravemente o Pita.

— Isto é vida?

— É vida. Esse pedaço de terra é húmus. Incha com a primavera, fala. Está morna e escuta, põe-na ao ouvido... Ouves?

— Ruído, vozes, gritos de embriões, um burburinho...

— Ora repara. É sempre a mesma coisa.

Maquinações filosóficas... Isto é um mundo e isto — e aponta um charco — é um mundo. Nesse charco adiante, aí, vês?...

— É oiro.

— Não, é água onde o sol se espelha, apenas água...

O Gabiru curvado mergulha as mãos afiladas e negras na poça. Tira-a depois para fora fascinado. As gotas daquela água turva caem qual oiro líquido, trespassadas pelo sol, num chuveiro de faíscas.

— Eis estrelas! — exclama comovido.

— Perdão, ê apenas como te disse, um charco, um desprezível charco. Habitua-te primeiro a ver.

— Quero ver mais!

— Habitua-te primeiro a ver...

O sol que tomba a flux corre, afoga, doira, penetra os seres e as coisas. No dia húmido ouve-se o ressurgir da vida: a lama mexe-se, os troncos engrossam, a água nasce inchada, nessa manhã de primavera, em que tudo se transforma sob a esteira do sol. Tinha chovido na véspera e até nas mais pequenas coisas, na pegada dos bois onde a chuva encharcara, irrompe uma vida exuberante, apressada, de seres que em minutos de existência têm uma prodigiosa tarefa a cumprir: amar, criar, morrer...

— Eis uma árvore — aponta o Pita.

— Como ela gesticula para nós!

— Pois aí tens uma árvore.

— Que coisa enorme e bela que é uma árvore! É diferente da outra... E é uma árvore? Uma árvore dá água, ouço a água a cair.

— E o ruído das suas folhas.

— Uma árvore é viva. Fala? É o ser mais belo que eu conheço. É verde, mexe-se...

— E ali, longe, um monte.

— Aquilo pequeno? Um torrão como este que os meus pés desfazem. Só é violeta. Maior é uma árvore!

Maior!... E esta poeira luminosa que nos envolve, que é?

Alma?

— Maquinações filosóficas... Caminha agora, vê...

Eu vou-me deitar à sombra... Podes ver...

O Pita tirou as botas e estendeu-se ao pé dum sobro.

Da algibeira sacou o caderno de notas e pôs-se a escrever:

Deve à D. Antónia três meses em atraso — 30 500 rs.; a Haver das explicações da natureza aos domicílios — $000... Diferença...

O Gabiru vai andando ao acaso. Pica-se nos espinhos, esmaga entre as mãos flores e rebentos, magoa-se nas pedras. Encontra sebes orvalhadas, árvores brancas todas flor, abrunheiros em flor, e uma hora fica absorvido de. fronte dum velho muro, encostado ao qual uma macieira treme, carregadinha de flor. Há galhos que lhe parecem emoção. Os pés calcam ervas espezinhadas, que também deitam cá fora o seu sonho; esquece-se ao pé das fontes vendo-as jorrar e põe-se a respirar fundo, querendo embeber-se daquele ar carregado de vida.

De repente cai um destes chuveiros de primavera, precipitados e rápidos. A chuva que tomba é morna. As plantas bebem-na, as flores abrem-se tontas e escondem gotas nas corolas; vêem-se crescer as pequeninas folhas verdes como se inchassem e os gomos tingidos de resina estalam, abrem, com um ruído sufocado — ah!... Tudo fica baço a princípio, a terra molhada é dum negro gordo; um frémito corre nas folhas tenras... Depois, como um véu que se rompe, o sol começa de novo a correr. As fontes deitam oiro, as plantas têm fios de oiro e no chão há toalhas e caminhos de oiro e sombras.

— Senhor Pita, eu quero ser isto...

— Isto quê? — resmunga o outro concentrado.

— Quero ser isto!...

Mas Pita, enfronhado nos cálculos, resmoneia:

— Maquinações filosóficas. Deixa-me... Eis a diferença — 22$000 réis... Eis!...

O Gabiru caminha. Depois cai entre a erva tenra e nascida e deita-se a ver os rabiscos do sol e um galho tão em flor, que parece uma teia de luar esquecido. Primeiro o tronco incha: há como ponto negro que estoura, para ser botão e depois flor... Medita. Está um dia morno e húmido. Saíram das tocas os bichos internados todo o inverno. Vespas passeiam a sua roupa de oiro no mármore das flores e toda a terra remexe. Acreditá-la-íeis viva.

Em que se põe a pensar? O seu ouvido de enclausurado, afeito ao silêncio, ouve até ao fundo da terra o rumor dos bichos, tanto tempo empedernidos, que esfuracam para o sol; das sementes que rebentam e sobem para a luz, o glu glu das raízes gordas e felizes ao mergulharem no húmus.

É um barulho de maré longínqua que cresce, galga, aumenta, transborda... Espavorido deita a correr... Por toda a parte as sebes, as ervas escondidas, os tojos bravios, para quem ninguém repara, crescem. Há-os nas pedras; há-os no ventre ressequido dos calhaus.

Anda, anda, e dá com águas grossas, felizes, apressadas; com quintaloiros onde a verdura cresce aos borbotões; pinheiros, depois silvas, bravios — e até nos sítios mais estéreis encontra a mesma vida e o mesmo amor.

Que força é esta que faz mexer a terra e a abala?

É uma torrente, um rio subterrâneo branco e verde, que vem à supuração? Um riacho de tintas, brotando à superfície do solo em labaredas verdes, todas roxas, inteiramente brancas? Há verdura tão ténue que di-la-íeis uma névoa verde; folhinhas que parecem feitas de um hálito que se pegou aos troncos.

A sombra das árvores enche-o de refrigério, envolve-o na atmosfera de simpatia e frescura que elas exalam.

Por fim o Pita vai encontrá-lo tolhido, de olhos extasiados entre flores esmagadas. Nas mãos flores, aos seus pés flores esmigalhadas.

Estes pedaços são arrancados às reflexões filosóficas do Gabiru, a que chamou A Árvore. A Árvore porquê? Porque com ela germinaram, deitaram grandes ramos, raízes subterrâneas e fundas.

A Árvore sustentou-se de desgraça. As suas raízes alimentaram-se deste húmus — a vida dos pobres. Damos aqui alguns pedaços do livro.

Appendix A

Maio de 1899 / Janeiro de 1900.
CC BY-SA 4.0

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Ulrike Henny-Krahmer

Citation Suggestion for this Object
TextGrid Repository (2024). Collection of 19th Century Portuguese Novels (1840-1910). Os Pobres. Os Pobres. The CLiGS textbox. Ulrike Henny-Krahmer. https://hdl.handle.net/21.T11991/0000-001D-9E1E-F